quinta-feira, 31 de março de 2022

Colegio Normal Santa Terezinha/ Uma história/ Educação para a vida



Na noite de 9 de março de 1960, uma quarta-feira, as internas do Colégio Santa Terezinha foram arrancadas do seu sono e, de camisolas, obrigadas a fugir das chamas que atingiam o prédio.

O fogo devorou toda a estrutura do prédio e o trabalho de 30 anos das Irmãs da Providência-Gap. Várias vezes ampliado, restaurado, remodelado, o colégio recebera, no início do ano letivo de 1960, 360 alunas, 68 delas internas, entre filhas de caxambuenses e de famílias das cidades da região como Cruzília, São Vicente de Minas, Bocaina de Minas, Seritinga, Minduri e outras tantas.

Mas antes de começar a narrar a história do colégio, não posso deixar de citar Antônio Claret, um verdadeiro "rato de arquivo", que nos ajudou a encontrar o "Histórico da Escola Normal Santa Teresinha-Caxambu". Como? Bem, só ele sabe. Seu bom relacionamento com as Irmãs da Providência  de Itajubá, onde sua irmã estudou e serviu, Claret desencavou um documento datilografado que nenhum de nós haveria de conhecer.

Tampouco poderíamos recuperar parte da história do colégio sem consultar a nossa biblioteca familiar Célia Ayres de Lima/Araújo. Para a minha surpresa ela, a tia Célia, estudou lá dos 7 anos até os 17 anos. A irmã mais velha, Mercedes/Ayres/Soler, a colocou no grupo escolar, mas só cursou dois meses, sendo então enviada para o colégio das freiras para se tornar normalista. Normalista era chique, disse tia Célia nas nossas conversas telefônicas Brasil-Alemanha em 23 de junho de 2020. Lembrou-se de suas professoras, as irmãs Amélia, Stanislau, Josephina e Rita, assim como da madre superiora irmã Marcel. Por tia Célia, ficamos sabendo que o prédio já existia, quando da instalação do colégio. 

E existiam mesmo! Datada de 13 de dezembro de 1873 e realizada por José Ribeiro da Fonseca Silvares, da Sociedade de Geografia do Rio e Janeiro, segundo informações fornecidas pelo Coronel Fulgêncio de Castro, a planta da povoação já indicava o lugar reservado para a  Eschola.




Senta que lá vem histó
ria!

Em 1° de fevereiro de 1928, as irmãs Radegunda, Albertina e Catarina, invocando as bênçãos do padre Moye, fundador da Congregação da Providência de Gap, Franca, abrem as portas do colégio para a comunidade de Caxambu, sob a coordenação da madre superiora Maria Rosa de Lima.

Martinho Moye foi um sacerdote francês que, em 14 de janeiro de 1762, funda a escola Vigy, para levar as crianças o conhecimento religioso às crianças. À frente do trabalho estava Margarite Lacomte , a primeira semente da Congregação das Irmãs da Providencia.

Elas chegaram ao Brasil em 1904 e se instalaram em Carmo do Rio Claro, sul de Minas Gerais. A separação entre Igreja e Estado na Franca significou o fim do ensino religioso e por religiosos nas escolas públicas. As congregações religiosas foram proibidas de atuar em hospitais e instituições legais. A alternativa foi a expansão da ordem para a América Latina.

Em 1907 abriram um convento em Itajubá, que permanece até hoje como sede da congregação. Elas foram convidadas a iniciar os trabalhos em Caxambu pelo monsenhor João de Deus, que na época estava às voltas com a construção do Hospital São Vicente de Paulo, a Santa Casa.

Irmã Maria Radegunda já tinha experiência em educação, pois assumiu a direção da escola normal de Itajubá em 1917. Continuou o trabalho missionário expandindo pelo Sul de Minas, Caxambu  incluída. Onze anos depois, a congregação abre a Escola Normal Santa Terezinha, dando continuidade ao trabalho educacional. 

A primeira escola Normal do Brasil

A primeira escola normal no Brasil foi criada na cidade de Niterói em 1835, seguida por outras nas demais províncias do Império. Com o objetivo de formar professoras para atuar no ensino primário, as escolas normais atravessaram os tempos chegando aos anos de 1940 e 50 como instituições públicas fundamentais na formação de quadros docentes.

Diário de uma escola


Segundo documento encontrado por Claret, o colégio progride lentamente, devido à falta de local. O prédio da pracinha (foto), ocupado pela congregação, tinha portas que davam para a rua, o que sugere ter sido um estabelecimento comercial.

Várias irmãs dirigiram o colégio. Foram elas:

1930-1933, irmã  Auxence
1933-1939, irmã  Marcel
1939-1940, irmã Chère Soeur du Sauveur
1940-1944, irmã  Marcel
1940-1944, irmã das Dores
1946 -1952, irmã  Blandine
1952-1955 , irmã  Marcel
1955-1960, irmã São Paulo
1960- Maria Lucia Paim

Já no seu início, o colégio recebeu subvenções conforme a lei 173, assinada pelo prefeito Mario Artur Alves Milward em 1929. O valor da subvenção anual era de 10:000$000, mais a isenção de todos os impostos e taxas municipais. Também foi concedido à instituição o aluguel do prédio, em forma de subvenção, num esforço para que o trabalho educacional tivesse sucesso. 

O prédio sofreu várias intervençõesa partir de 1936, quando a congregação adquiriu  o terreno. As reformas terminaram em 1942, com o aumento do número de salas de aula e o dormitório das internas.

Em 11 de marco de 1937, o então governador interventor Benedito Valadares assinaria um decreto reconhecendo o colégio como estabelecimento de formação de docentes do ensino primário. Estava oficializado agora como parte da educação governamental. Em 7 de fevereiro, Alcides Lins, interventor federal, assina a autorização para que o colégio formasse também professores para o ensino secundário. O trabalho para que o colégio fosse reconhecido como instituição oficial do Estado foi levado adiante pelos  políticos locais, pelas famílias influentes e pelo bispo de Campanha, diocese à qual a instituição estava subordinada.

A primeira turma de normalistas de Caxambu

O Patriota, 1937
Em 2 de dezembro de 1937 é formada a primeira turma, com 12 normalistas. Maria Célia Cobra convida o público e família para a colação de grau. Era comum as famílias anunciarem nos jornais que seus filhos haviam se formado, o que era uma honra para toda a família. Isso demonstra o quão importante era a educação naquela época.

O colégio, situado praticamente no centro da cidade, era motivo de visitas de muitos políticos que prometiam e prometiam. Juscelino Kubistchek fez a sua visita em 28 de maio de 1951, e como sempre prometeu...

"Visitou ainda o Governador Kubistchek a 'Escola Normal Santa Terezinha', onde futuramente talvez sejam instaladas as repartições estaduais em Caxambu, e a Escola Reunida de Caxambu Velho. Segundo prometeu S. Excia, serão construídas, pelo Estado, mais duas Escolas Reunidas em Caxambu" (O Patriota). Ah, talvez, já escrevia o repórter, talvez...

Mas eram as incansáveis irmãs quem estavam à frente das obras. Em 1955 empreenderam a construção da clausura e de um galpão para as alunas. Quatro anos depois, a Congregação consegue comprar um terreno de cinco alqueires no bairro Bosque, onde mantinham um serviço de lavanderia, horta e pomar. Esta chácara cheguei a visitar como atividade da classe, e fizemos um piquenique lá. Na época estavam construindo um pequeno lago para criação de peixes. Fomos advertidas para não "chegar perto" das margens. Era o medo da gente cair e se afogar. Tudo tão limpo e arrumadinho...

Atividades extraescolares

O colégio promovia não só a educação, mas também a interação com atividades como quermesses em prol da biblioteca. As alunas também participavam de outra atividade que seria incomum nos tempos de hoje: acompanhar, em formação e em uniforme de gala, enterros de pessoas importantes da cidade, como o do comerciante José Justino da Silva. O cortejo fúnebre saiu do Caxambu Velho até o cemitério da cidade. Era o colégio prestando homenagens a um estimado cidadão, por meio de suas alunas.
 
Fogo! Fogo ! 
Zé Maria foi salvo


Era a madrugada do fatídico 9 de março de 1960, três dias após o início do ano letivo e do retorno das internas. Era também o dia da visita de Jânio Quadros à cidade, em campanha eleitoral para o pleito de 3 de outubro. A foto acima, segundo cartão postal da cidade, é o ultimo registro do prédio antes de ser incendiado. Segundo meu pai, José Ayres, eletricista, ele já teria advertido as irmãs para a troca da fiação na lavanderia, mas as providências chegaram tarde.

O corre-corre na madrugada foi grande, e, felizmente, não houve mortes. Como o prédio não estava no seguro, houve perda total. Tudo que se pode recuperar ficou depositado na rua, como algumas peças do museu da escola, 120 carteiras escolares e... o Zé Maria. Quem se lembra dele? Sim, o esqueleto que a gente chamava de Zé Maria foi salvo das labaredas, ficando exposto na pracinha ao lado da Casa Guedes. Ele foi testemunha da calamidade, lembra Graça Pereira Silveira. Uma visão trágica. Ah, pelo menos salvaram o Zé Maria.


Jânio Quadros, então candidato a presidente, visitou os escombros calcinados, acompanhado pelos políticos da UDN de Caxambu, como Acácio Almeida. Ainda havia cheiro forte de fumaça, relata Claret. Jânio prometeu, se fosse eleito, ajudar na reconstrução. Bem, de fato ele foi eleito, mas renunciou em agosto do mesmo ano, e pelo que consta, o colégio não recebeu nenhuma ajuda oficial dos três níveis de governo. Mais um que prometeu...

Que dificuldades! O colégio foi obrigado a fechar, bem... fechar não era exatamente a palavra certa, pois não existiam portas. O jeito foi contar com ajuda e solidariedade de várias instituições da cidade. O Hotel Jardim, de dona Helena Orla, serviu de residência para irmãs e alunas. As aulas foram ministradas em diferentes locais, cedidos gentilmente pela população, dentre eles no Hospital Infantil Virgo Potens, o Ginásio Caxambu, garagens e barracões diversos.

Em 22 de setembro, um tempo relativamente recorde, foi inaugurado o conjunto de salas, e apesar de toda a precariedade das instalações e a falta de conforto, o ano escolar ofereceu um bom rendimento, pois vontade não faltou. Mas havia outras batalhas a serem vencidas para o reerguimento definitivo do colégio. Em novembro do mesmo ano iniciaram-se as obras de reconstrução que tiveram que ser paralisadas até março de 1961 devido às chuvas torrenciais. São Pedro não ajudou.

A reconstrução

A reconstrução ficou então na mão de seus benfeitores, dentre eles o dinamarquês e empresário Sorensen, que tinha uma fábrica de laticínios em Cruzília, e cuja filha, Elizabeth, estudava na instituição. Sorensen, eleito presidente da Associação de Pais e Mestres da Escola, toma a frente das obras da reconstrução. Um dos que também fizeram parte dos trabalhos  foi o austríaco  Rodolfo Weber, mestre de obras na cidade. Conta o neto Rodolfinho Weber, que o avô constatou a solidez da antiga construção. Debaixo do colégio, até hoje estão as vigas de eucaliptos que faziam parte da antiga base de sustentação do prédio.

Transformações

O Patriota, 1937
Desde seus primórdios o colégio sofria concorrência de outras instituições escolares como o Colégio Sion de Campanha. Para lá iam as alunas dos mais aquinhoados das cidades sul-mineiras.
O colégio funcionou nos anos 60 e parte dos anos 70 com a função de internato e semi-internato, a modelo das instituições católicas de outrora. Com as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1971, houve a substituição das escolas normais pela habilitação específica de magistério. O estabelecimento passa então a denominar-se Colégio Santa Terezinha, oferecendo ensino de 1° e 2° graus. Continuava-se a ministrar os cursos de pré-escolar, aos quais foram acrescidos cursos Técnicos de Secretariado e Técnico de Magistério.

Mas a sociedade estava mudando, o país se industrializando e a necessidade educacional da juventude caxambuense e da região não era suprida formando somente apenas normalistas. Com as LDB, houve a substituição das escolas normais pela habilitação específica de magistério e, em 1996, a formação de educadores passa acontecer em nível superior, em cursos de graduação plena. O curso de normalista  dentro das novas leis, não fazia mais sentido.

O Brasil, e Caxambu, claro precisava de outro modelo de educação, que não aquela com base religiosa, como era oferecida nos colégios católicos renomados, como o Sion de Campanha. Me lembro, o então Colégio Estadual Ruth Martins de Almeida, criado em 1966, de orientação laica, preparava melhor para um tal  de vestibular. O ensino do estabelecimento das freiras, já na minha época, era considerado fraco, não fornecendo bases para as faculdades "lá fora". Assim, a instituição católica deixou de funcionar em 1977. O Estado de Minas Gerais comprou o prédio da Congregação das Irmãs da Providência em 1982 e transferiu para lá a Escola Estadual Ruth Martins de Almeida. 

Educação para a vida

Nem de longe podemos negar o legado que a instituição nos deixou. Muitas de suas alunas se tornaram educadoras, como a minha tia Célia Ayres de Lima/Araujo, que pertenceu à terceira turma de normalistas, formada em 1937, e que foi professora no Grupo Escolar Padre Correia de Almeida. Mais tarde lecionou no prestigioso Colégio Pedro II do Rio de Janeiro e lá se aposentou. 

Poderia enumerar muitas e fazer injustiça com outras, mas como estamos no blog da Família Ayres, não podemos deixar de destacar a normalista Graça Pereira Silveira (foto ao lado com seu diploma) minha professora no pré-primário, que me ajudou a construir barquinho à vela e que, mesmo não querendo, não conseguiu escapar do seu destino de professora, indo lecionar na escola municipal de São José dos Campos até se aposentar.







Fotos: 
Arquivo privado da família Ayres/Rodrigues Pereira.
Fonte:
Balbino, Antonio Gilberto. Igreja e a educação família no Sul de Minas (1900-1950): O ultramontanismo e as incursões da modernidade. Itabira, 2018.
Folha Mineira (MG), 1962 a 1963
Jornal O Patriota, 1929-1951
Colégio Sagrado Coral de Jesus, 1907-2015
Arquivo do Exército, que forneceu os mapas que apresentamos no blog.
Agradecimentos:
Agradecimentos muitíssimos especiais a Antonio Claret pelo seu empenho em conseguir documentos e informações que compõem o nosso texto. 
Julio Jeha sempre

sexta-feira, 25 de março de 2022

Tio Vicente, um baependiense desaparecido


Vicente Francisco da Luz, filho de Maria Vitória da Conceição (1898-1958) e Sebastião Gomes Francisco da Luz (1892-1951). Tio Vicente perdeu o contato com a família no final dos anos de 1960. Ele não era casado, nem tinha companheira conhecida. Sabemos somente que ele foi para São Paulo em busca de trabalho e desapareceu. 

Desaparecidos

De acordo com a Delegacia de Proteção, da Delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, até o final da década de 1990, mais de 200 mil pessoas desaparecem por ano no Brasil, segundo um levantamento feito numa pesquisa da Universidade de Brasília. A subnotificação pode elevar esse número. As razões e circunstâncias dos desaparecimentos são muitas, desde problemas de saúde mental e migração até violência. Não há um cadastro nacional dos desaparecidos para facilitar a procura dos familiares, como um banco de dados com informações de delegacias, hospitais, institutos médicos legais e albergues. O Registro Nacional de Veículos Automotores funciona, e até acham carros roubados no país vizinho, Paraguai, mas para seres humanos?

 

Tio Vicente aparecia de vez enquanto e fazia visitas aos seus parentes em Baependi e minha mãe, Arminda Ayres, em Caxambu. Uma das últimas vezes que o vi foi na casa da tia Rosa, em Baependi, no início dos anos de 1970. Ele apresentava algum transtorno mental, via o diabo embaixo da cama, talvez uma esquizofrenia não reconhecida.


Sabíamos que ele morava e trabalhava na cidade de São Paulo, era solteiro e se parecida exatamente como na foto, como eu o conheci, quando desapareceu. Soube pela sobrinha Rosângela Rosa, que ele teria ido para o Paraguai e lá falecera. Hoje resolvi contar sua curta história, sua pequena biografia, uma vida não acabada, uma história de vida não concluída.

 

Foto:

Arquivo privado da família Ayres

Agradecimentos:

A Julio Jeha, sempre