domingo, 10 de junho de 2018

O engenho e a roda do engenho no Chapeo/ Muita água e história passou por esse moínho



E contudo, entre o passado, mesmo longínquo, e o presente nunca há ruptura total, descontinuidade absoluta ou, se se preferir, uma não contaminação. As experiências do passado prolongam-se incessantemente na vida presente, alargam-na (...). Enfim, esta dialética - passado, presente; presente, passado é, com certeza, pura e simplesmente, o coração, a razão de ser da própria história (Braudel, 1986:53). (1)

E se não fossem as surpresas dos registros... uma roda de engenho? Absolutamente uma relíquia dos tempos, que liga o presente ao nosso passado, uma prova concreta de que os nossos antepassados a construíram, com ela trabalharam, ganharam a vida e criaram os seus filhos. Graças a ela a família Lima pode comer, ir à escola.

"Onde quer que se localizassem, os moinhos cumpriam um importante papel nas suas paragens, fornecendo o fubá, para a confecção de bolos, broas, sopas e o angu - cujo papel sempre foi destacado na alimentação de escravos negros. Da moagem realizada nesse rústico maquinismo, provinha também a quirera (ou canjiquinha, como é chamada em Minas Grais), fundamental na criação de porcos, cavalos e aves domésticas." (1)

O doce-amargo sabor da escravidão

A origem do moinho hidráulico remonta à antiga Grécia. Ele foi um dos elementos marcantes nas paisagens rurais das Minas Gerais. Estava presente nas grandes e pequenas propriedades e foi parte importante da estrutura agrária do Sudeste brasileiro.

O primeiro engenho construído no Brasil que se tem notícia foi em Pernambuco no ano de 1516, destinado à fabricação de açúcar. A partir de 1530, os donatários das Capitanias iniciaram a implementação de engenhos para atender a grande demanda do produto, e assim iniciou o povoamento em torno deles. Para o trabalho, tentaram escravizar, sem sucesso, os indígenas. Então optaram por importar escravos da África. O subproduto da fabricação do açúcar, a cachaça, foi moeda de troca no comércio de escravos. O doce-amargo sabor da escravidão...

Os engenhos possuíam diferentes características. Havia unidades de moer cana, de descaroçar algodão, de triturar minério e limpar cerais - engenhos de pilões, de beneficiamento do milho - engenho de fubá ou moinho d`agua e os engenhos de serra. Os engenhos de água eram de construção mais complexa que os movidos por tração animal, e sua manutenção, dispendiosa. Tinham, porém, maior capacidade produtiva que os de tração animal. Para a sua construção era necessária, além da matéria prima, madeira de grande resistência à água, como a cabreúva, a cangerana, a canela-preta, angahi-rajado, com as quais eram confeccionadas a parte central dos moinhos. Era preciso, também, um bom carpinteiro. 

Já os moinhos de pedra eram compostos por pedras de grande resistência com sulcos para melhorar a moagem dos grãos, denominadas mós. O relevo acidentado da região e a água em abundância da região do Chapeo possibilitaram Pedro ter os dois sistemas: a unidade de moenda de cana, com a grande roda de madeira, e a moenda de pedra, na casa atrás. (fotos).

João José de Lima e Silva, a roda da vida

E aqui voltamos a João José de Lima e Silva (1798-1875) o mais antigo ancestral da Família Ayres/Lima/Loesch e suas ramificações, para explicar as coisas.

O nosso tataravô se mudou de Pouso Alto para o Chapeo por volta de 1854. Até o seu falecimento, em 1875, eles tiveram que conviver com a conturbada política da região. Os movimentos abolicionistas chacoalhavam a Província, e a insatisfação com a possível falta de braços para tocar as lavouras levava os produtores agrícolas a temer pelo seu futuro. Eles claro, eram parte da história. Com um plantel superior a 20 escravos, sua propriedade podia ser considerada de médio porte. Nela havia criação de animais, cultivo do milho, feijão, arroz, algodão, café e fumo. Este último que ajudou Baependi a tornar-se famosa, pela qualidade de seu tabaco.

Na história, a Comarca do Rio das Mortes, unidade administrativa no tempo do Brasil-Colonial na qual Baependi estava inserida, foi considerada de alto nível de desenvolvimento econômico. O indicador eram os plantéis de escravos. Numa tabela da presença de escravos e tamanho dos plantéis da primeira metade do século XVIII, baseados nos inventários das comarcas de Ouro Preto e Rio das Velhas, constava que os possuidores de até 20 escravos significavam 27,4% na estrutura econômica. João José  fazia parte dela. O moinho então significava para a Família Lima ferramenta de trabalho, e acredito que a roda desse moinho tenha servido a várias gerações, desde João José de Lima e Silva Pedro e Lina.

Então vieram novos tempos. O Brasil não era mais colônia, a escravidão chegou ao fim e o Brasil foi, mesmo que lentamente, se transformando. Muitos engenhos foram desativados pela carência de braços cativos, e as grandes demandas de açúcar já não existiam. Mesmo com as mudanças econômicas, os moinhos, suas rodas e pedras tiveram ainda uma vida longa em Minas Gerais. Eles estariam vinculados à produção para o consumo próprio, e o pequeno excedente era comercializado na região até os anos de 1960.

Os engenhos de Minas e as Minas dos engenhos



Na propriedade de Pedro Francisco de Lima e Lina Amélia de Lima era praticada a agricultura familiar, uma comprovação da continuidade das atividades econômicas exercidas por seus antepassados. Pedro Francisco foi descendente de Francisco Ignacio de Lima, neto de José Ignacio de Lima e bisneto de João  José de Lima e Silva.

O moinho ainda era parte integrante dessas atividades. Com a cana moída no engenho era fabricada rapadura, bem como o fubá, moído no pequeno engenho de pedra. Eles tinham uma pequena criação de gado e aves, fabricavam queijo, principalmente para os hotéis de Caxambu, na alta temporada. Os produtos eram transportados como nos tempos do Brasil colonial, no lombo de cavalos, até que chegou a modernidade. Pedro foi o primeiro lá do Chapeo a adquirir um veículo motorizado, um Jeep, e assim as mercadorias chegavam rapidamente ao seu destino.

Nas ancas do burro

Assim lembra Antonio Claret Maciel Santos:

A Venda de meu pai, Joaquim dos Santos que existiu da década de 30 até 1960, na Rua Teixeira Leal, era ponto exclusivo e único na comercialização de fubá moído em moinho de pedra acionado por água, produzido no Chapéo pelo "Seu" Pedro que semanalmente trazia um saco cheio dentro de um jacá de bambu  nas ancas de um burro. O produto era vendido rapidamente. Como clientes fiéis me lembro de Rangel Viotti e José Bráulio Junqueira que pedia o produto do interior de seu "rabo de peixe", quando voltava de sua chácara, nos fundos do Parque da Exposição. Esse "seu" Pedro era presbiteriano.

Para a nossa tristeza o moinho de madeira foi vendido. Ainda bem que Loide Lima/Losch o fotografou, provando que de fato ele existiu, e assim pudemos contar a sua história. O moinho de pedra, ah, esse fará parte de uma outra reportagem. 
Fotos:
Arquivo privado da Familia Lima/Loesch
Na foto, Carolina e Fernando, em 1980, filhos de Loide Lima Loesch.
Fonte:
(1) ANDRADE, Francisco de Carvalho Dias, in - A presença dos moinhos hidráulicos no Brasil - tese de Doutorado, 2015.
(2) GODOY, Marcelo Magalhães, in No país das minas de ouro a paisagem vertia engenhos de casa e casa de negócio - Um estudo das atividades agroaçucareiras tradicionais mineiras, entre o Setecentos e o Novecentos, e do complexo mercantil da província de Minas Gerais.
Agradecimentos:
Agradecimentos muitíssimos especiais ao meu contemporâneo Julio Jeha e a Antonio Claret Maciel Santos que com suas lembranças, complementa a nossa história, comentado no Facebook e transcrito no nosso texto.

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