domingo, 17 de novembro de 2024

Chácara das Uvas no roteiro turístico da cidade de Caxambu na década de 1950/ Só saudades


 A minha querida prima de segundo grau, Jacqueline Diorio, filha de Sylvio Ayres Diorio, o Sylvinho, já  falecido, me enviou está preciosidade. A saudade mata a gente.

domingo, 10 de novembro de 2024

José Joaquim de Sousa Pacheco/ um veterano da guerra do Paraguai sepultado em Caxambu



A postagem poderia ser iniciada com a frase: "Antonio Claret, um detetive no cemitério", por ter achado tantos pedaços de nossa história espalhados pelas lápides. O penúltimo foi o jazigo de Benedito Alves de Belém, outro veterano da Guerra do Paraguai, um pernambucano que faleceu em Caxambu, aos 100 anos de idade. Nós demos a ele dignidade: seu túmulo foi restaurado à expensas de Claret, e escrevemos sua história. Agora essa. Ai Claret!

Sim, sim, um português foi defender a bandeira do Brasil na contenda da Tríplice Aliança. Joaquim José de Souza Pacheco foi para guerra juntamente com o companheiro Antonio José de Castilho Junior, o avô  do padre Castilho da cidade de Caxambu. Ambos eram muito jovens quando ingressaram no exército de Voluntários de Pátria indo combater na Guerra do Paraguai (1865-1870). Sabemos que Castilho participou de combates, foi ferido, voltou como herói, e por um decreto imperial conseguiu o posto de fiscal da cidade de Baependi, já Pacheco construiu sua carreira como comerciante na cidade de Conceição do Rio Verde, e veio a falecer em Caxambu onde foi sepultado. 

Igreja de São Martinho de Recezinhos, Penafiel, Portugal, construída em 1568,
onde Joaquim José Souza Pacheco foi batizado, em 1846.

A guerra e os portugueses na guerra

A guerra do Paraguai foi o maior conflito armado da América do sul. Seu início se deu quando Solano Lopes na sua visão expansionista, invadiu o Mato Grosso e a Argentina. O império do Brasil e as repúblicas da Argentina e Uruguai se uniram para enfrentar o Paraguai. Ela teve início em fins de 1864 e terminou, em 1870, com a derrota devastadora para o Paraguai, com um custo altíssimo de civis mortos, entre 50 a 90% da população masculina. O Brasil não saiu melhor, pois endividou-se com os bancos ingleses, oque causou um grande desgaste político e acelerou da queda da monarquia. A Argentina foi a que mais levou vantagens, conseguindo a ampliação de seu território. O pequeno Uruguai, saiu como entrou, sem nada ganhar além das vidas perdidas. 

Devemos lembrar que o Conde D`Eu, consorte da Princesa Isabel, personagens do império, e que em Caxambu foram eternizados com nomes de fontes do Parque das Águas, estava à frente das tropas brasileiras, quando assumiu o comando, substituindo Caxias, praticamente no último ano da guerra, em fevereiro de 1869, e foi o responsável por escrever um dos mais vergonhosos capítulos da história do império. Na Batalha de Acosta Nü, acontecida em agosto de 1869, 3.500 crianças, recrutadas como soldados pelo exército paraguaio, foram cachinadas por 20 mil soldados. Sem palavras.

Até então a campanha militar dos portugueses na Guerra do Paraguai é ainda desconhecida. Portugal tentava manter-se "neutro", assim como todos os países europeus, posição que perdurou durante todo o conflito. Documentações diplomáticas comprovam a intervenção do governo brasileiro em convocar cidadãos portugueses para que acompanhassem os militares no Brasil. Passados o ardor patriótico dos primeiros meses da guerra da convocação voluntária de brasileiros para ingressarem nos batalhões da Guarda Nacional, e de Voluntários da Pátria, muitos cidadãos portugueses foram encorajados a se engajarem, voluntariamente, com o objetivo a troco de dinheiro, substituindo brasileiros que não desejavam ir para a guerra. Assim de alguma forma José Joaquim de Souza Pacheco foi para a guerra, e ainda bem que voltou, senão não estaríamos aqui contando as histórias.

De volta à Portugal/ A genealogia dos Souzas e Pachecos


Recezinhos de São Martinho, Penafiel, Portugal

Perambulei (virtualmente) muitos dias pelas ruas da velha São Martinho de Penafiel, antigo Recezinhos, na província Entre Douro e Minho, próximo a cidade do Porto, norte de Portugal, local de nascimento de José Joaquim de Souza Pacheco. Pensei encontrar a pequena localidade no estado que Pacheco a deixou há quase 165 anos, quando tudo ainda estava nos primórdios, paisagens bucólicas, casas antigas, alguma lembrança do passado... ledo engano! Hoje a Recezinhos de São Martinho tem não somente ruínas (foto), mas casas chiques, dizendo muito da situação econômica da região que até hoje é ainda baseada na agricultura, e principalmente no cultivo de uvas.

Joaquim José de Souza Pacheco nasceu 28 de março  de 1845,  e foi batizado em 7 de março  de 1846, na igreja de Recezinhos (foto). Ele era filho de Antonio Souza Pacheco e Maria Rosa Machado. Na localidade há um grande número de sobrenomes Souza Pacheco desde os anos de 1700. Para aquelas bandas há até um rio chamado Souza. E para mergulharmos na genealogia, Souza é topônimo relacionado às Terras de Sousa e as famílias que habitavam às margens do rio Souza, do latim Saxa, seixos: pedras. O primeiro a ter o sobrenome, segundo genealogistas, o nobre Dom Egas Gomes de Sousa, um nobre militar nascido em 1035. Assim a localidade se chamou Terras de Souza, na freguesia de Novelas, em Penafiel, perto de onde nasceu o nosso veterano. Já o Pacheco vem do latim Pacieco significa "aquele que vem de Espanha", e teria surgido na Península Ibérica. A primeira pessoa registrada com o sobrenome de Pacheco, em Portugal, teria sido Fernão Rodrigues Pacheco. Outra personalidade histórica foi Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), que participou das negociações do Tratado de Tordesilhas, assinado em  22 abril de 1529, entre o a coroa portuguesa e espanhola, para dividir as terras "descobertas e por descobrir", resultantes da viagem de Cristóvão Colombo. Chega! Voltemos ao nosso Pacheco.

Porque tanto portugueses resolveram partir para a colônia? Uma de muitas explicações foi a limitação do desenvolvimento econômico, de estruturas agrárias tradicionais de Portugal. Na falta de industrialização que pudesse absorver a mão de obra, muitos foram tentar sua sorte além-mares. O Brasil exercia um atração para os portugueses. Um mundo, que apesar de desconhecido atraía gente de toda a idade. Minas Gerais, particularmente, atraiu os que estavam a procura de ouro e fortuna.

Em alguma data que ainda não pudemos identificar, Pacheco imigrou para, ainda colônia Brasil, vindo a residir primeiramente em Baependi, depois na povoação de Contendas, hoje Conceição do Rio Verde. Na ocasião eclodia a guerra do Paraguai. Não sabemos também se Pacheco foi convocado, ou se apresentou voluntariamente para compor o exército dos Voluntários da Pátria na Guerra. Ele fazia parte do exército da Guarda Nacional, e no decorrer de sua carreira, obteve a patente de "alferes" e mais tarde a de "major".


Em 13 de junho de de 1873, três anos após o fim da guerra, casa-se no altar privado de Antonio José de Seixas, seu sogro, em 13 de junho de 1873, em Baependi com Silvéria Candida de Seixas, conhecida como Tuca, tendo como testemunhas José de Seixas Batista e Zeferino José da Motta. Da união nasceram: Maria Pacheco (1874-?); Antonio Pacheco (1875-?), Joaquim Pacheco (1876-?), Augusto de Souza Pacheco (1877-?); Ovidio de Souza Pacheco (1883-?9 Alzira Seixas Pacheco (1883); Cincinato de Souza Pacheco (1885-?). Eurico de Souza Pacheco casado com Adolphina de Souza Pacheco (batismo 1911 menina Sylveria).Teodomiro de Souza Pacheco . (?-1950). 

Em 1874 aparece como "negociantes de fazendas, ferragens, armarinho, etc" no Almanak Sul Mineiro de Conceição do Rio Verde com o nome da razão social "Seixas Pereira e Pacheco". Era a oportunidade que o português teve de começar a vida nos negócios com a ajuda da família de sua esposa.

Contendas/ justificando o nome

Seguimos algumas pistas de sua residência em Conceição. Em 1883 um fiscal da cidade comunica à câmara de Baependi, a qual a povoação estava subordinada, por uma denuncia anônima, que o Pacheco teria fechado um terreno à margem do Rio verde, que ficava entre a sua horta, e um terreno do logradouro público. O fiscal solicitava a comissão informar a Pacheco para  que a contenda se resolvesse "seja tudo de harmonia com o direito". O caso, ou a "contenda" justifica o nome da cidade. Em 1758 o lugar foi denominado Contendas, exatamente devido as brigas entre os fazendeiros pela posse de terras. Posteriormente passou a chamar Águas de Contendas, e em 1948, o distrito passou a pertencer a Conceição do Rio Verde.  Pacheco então honrou a tradição. 

Almanak Sul Mineiro, 1883/Conceição do Rio Verde
Não só de contendas vivia Conceição. Além de ser "homem de negócios", com os títulos militares, Pacheco era uma autoridade na cidade. Ele tinha a patente Alferes da Guarda Nacional, e posteriormente foi promovido a Major pela sua participação no Exercito de Voluntários da Pátria. Pacheco era exaltado pela suas "brilhantes qualidades cívicas que o exornão  o seo carácter de cidadão de uma Patria Livre, a quem já prestou. V. S. valiosos serviços nos campos memoráveis do Paraguay". Ele auxiliava a justiça pública no serviço de segurança da pequena povoação. Em 1883 deu apoio ao segundo cadete Nicolao Antonio de Tassara de Padua, quando descobriam o autor do roubo feito por José Antonio de Campos, na igreja Matriz e o levaram para prisão.

Joaquim José de Souza Pacheco na década de 1880 figurava no Almanak Sul Mineiro como comerciante na cidade de Conceição de Rio Verde. Eram os famosos armarinhos onde eram vendidos "fazendas" tecidos, bem como produtos alimentícios. O sal era produto de destaque pra o rebanho de bovinos, e a carne produzida era destinada aos mercados do Rio de Janeiro. Em 1882 fez um requerimento à câmara de Baependi pedindo revisão dos pesos e medidas para a cobrança de impostos. Como negociante solicita a reformulação dos pesos e medidas como forma de cálculo dos impostos. Na época as unidades eram de varas, covados, balança e marcos, que caíram em desuso pela reforma. 

Almanack Sul Mineiro, 1884/Conceição do Rio Verde
Em 1883 arrematou serviços na cidade, aprovados pela câmara de Baependi. Isto queria dizer que ele prestava serviços de manutenção de água, luz, logradouros públicos, consertos da ponte sobre o rio  Verde, que foi várias vezes destruída por enchentes. Como era comum, investidores locais executavam os serviços, a serem reembolsados, posteriormente, pelos cofres da Província. Reconhecido como veterano da guerra, solicita Pacheco, em 1883, sua inscrição eleitoral, em Conceição, o que lhe daria direito de participar das eleições. Poderia ser eleitor somente aqueles que tivesse posses financeiras, ou no caso dele, patente militar, mas houve a imposição  de  que se naturalizasse, oque seria "um processo sumário", já que fora oficial do exército dos Voluntários da Pátria. 

Estrada Minas -Rio/ Estação de Contendas (Conceição do Rio Verde)



No dia 23 de junho de 1883 chega bufando o trem de lastro à Conceição do Rio Verde. A locomotivas Buarque de Macedo n° 8, em homenagem a Manuel Buarque de Macedo, ministro da Agricultura do Império, e seus 3 vagões de passageiros eram esperados ao som da banda de música e mais 3.000 pessoas que compareceram ao evento. O percurso de Cruzeiro até Três Corações do Rio Verde tinha uma extensão de 170 km e o maquinário correu numa média de 52 km por hora. Estava presente  o engenheiro chefe da estrada sr. Staley, bem como todas autoridades politicas da corte, Cruzeiro e claro, Pacheco que era o secretário da comissão da organização do acontecimento histórico para a cidade. Não faltou neste dia o baile no final na casa do sr. Barbosa, o anfitrião da festa, com comes e bebes.

Em 1900 Pacheco tinha seu título de major e residia em Caxambu, pois achamos diversos registros paroquiais que comprovam sua estada definitiva na cidade.

Destacamos dois de seus filhos: Antonio de Souza Pacheco também seguiu carreira militar, capitão do exercito em 1919. Ele foi casado com Alcina Azambuja (1902), em Santa Vitoria do Palmar, Rio Grande do Sul, e faleceu na cidade de  Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 16 de dezembro de 1944, e Theodomiro Souza Pacheco, casado com Maria Faria de Pacheco. Theodomiro ingressou na faculdade de Direito de São Paulo cursando de 1911 a 1915, com locação de grau em dezembro de 1916. Exerceu a advocacia até 1950. Faleceu em São Paulo em 30 de julho de 1950.


Joaquim José de Souza Pacheco faleceu em 1908, às quatro horas da manhã, em Caxambu, aos 56 anos de idade, e foi sepultado no Cemitério da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios. Pacheco deixou grande descendência espalhada por Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Muitos de seus ancestrais ainda vivem em Portugal.

Fonte:
O Baependiano O Patriota (MG)
Diário de Minas (MG) 1866 a 1875.
A Actualidade: órgão do Partido Liberal (MG) 1878 a 1881.
Jaceguai, Artur (Almirante), in Reminiscencias da Guerra do Paraguai. Biblioteca do Senado.
Diário de Minas (1866 a 1875).
ABPF - Regional Sud de Minas. História e noticias da Regional Sul de Minas.
Noticiador de Minas (MG) 1868 a 1871.
Pharol (MG) 1876 a 1933.
CAMPOS, Bruno do Nascimento, inTropas de Aco: Os caminhos de Ferro no Sul de Minas (1875-1902).
SANTOS, Gerada, in A população da cidade de S. Martinho de Penafiel nos séculos XVII e XIX (17900-1807).
CHIAVENATO, Julio José in Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai.
Arquivo Público Mineiro
Arquivo Nacional do Porto/ Tombos
Arquivo Distrital de Vila Real
CUNHA, Afonso Henrique Carvalho in, A Emigração para o Brasil no distrito de Vila Real (1838-1860). Universidade do Minho.
AH Aventuras na histórias web Ha 151 anos, mais de 3 mil crianças eram mortas na Batalha de Acosta Nu.
PAULA, Edgley Pereira, in A Guerra do Paraguai na imprensa portuguesa (1864-1870): entre a neutralidade oficial e o apoio à causa brasileira, Universidade de Coimbra, 2022.
Folhinhas de Laemmert - Chronica dos principaes acontecimentos concernentes á actual Guerra do Paraguai, 1865.
Foto:
Arquivo privado de Antonio Claret Maciel realizada no cemitério de Caxambu na dada de 2018.
Foto da Igreja de São Martinho de Recezinhos: Ecoreabilita, web.
Agradecimentos a Julio Jeha, sempre
Nota:
Antonio Maciel Claret, advogado, formado em 1975 pela Universidade de São Paulo. Autor dos livros: A Família Maciel em Baependi e a Saga do Tenente José Francisco Maciel, em 2016, e Memórias da Fazenda da Roseta e do Barão de Maciel, em 2019.

Solange Ayres, Licenciada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, e desde 2013 escreve o Blog Família Ayres, histórias e memórias da cidade de Caxambu e Baependi, juntamente com Graça Pereira Silveira, professora aposentada do ensino fundamental de São José dos Campos, São Paulo.


domingo, 13 de outubro de 2024

Benedicto Alves do Belém/Um pernambucano herói da Guerra do Paraguai sepultado em Caxambu/ Comemorar ou esquecer




E lá foi o Antonio Claret Maciel escarafunchar as pedras, as lápides do cemitério de Caxambu. Por uma triste razão: ele compareceu ao sepultamento de sua irmã e resolveu percorrer a parte mais antiga de nossa última estação. Na quadra 27, túmulo 25, estava escrito:

Jazigo Perpétuo Benedito Alves do Belem hum veterano da guerra do Paraguae. De Deus eterno a eterna recompensa. 
Os túmulos falam!

Tomei emprestado as palavras de Paulo Roberto de Freitas Costa em sua tese de doutorado: Guerra do Paraguai: os caminhos da memória entre a comemoração e o esquecimento para esclarecer os nossos propósitos: não deixar cair no esquecimento Benedicto Alves do Belem. Quem iria saber se não estivessem as palavras talhadas em pedra e o Claret não perambulasse por lá... 

No dia 10 de julho de 1870, o governo de D. Pedro II realizou no Rio de Janeiro a "festa do Barracão", para comemorar a vitória do Brasil e lembrar os mortos na Guerra do Paraguai e celebrar as tantas vidas que pereceram em solo paraguaio. A memória foi protagonizada por Caxias e o conde D'Eu. O reverso das medalhas que ornamentavam os peitos nobres era visto pela ruas de Niterói, Salvador, Recife e São Paulo e do Desterro, onde soldados doentes e mutilados, egressos dos campos de batalha, mendigavam, provocavam desordens públicas e davam-se em espetáculos. Nas províncias, viúvas e órfãos suplicavam ao rei uma reparação pela perda do arrimo de família. Nas secretarias do governo, nas salas dos presidentes de províncias e nas redações de importantes jornais, era grande o volume de ofícios e petições requerendo pagamento de indenização ao governo. Veteranos da campanha reivindicavam soldos atrasados, lote de terras, empregos públicos, decorações e títulos honoríficos. Nas prisões públicas encontravam-se ex-escravos reconduzidos ao cativeiro pelos seus senhores. Na ilha de Bom Jesus ficava o suntuoso Asilo dos Inválidos, um lugar de ressentimento. 

Certidão do cartório de Caxambu 
Assim a história que procuramos narrar, transita por dois caminhos: o da comemoração e o do esquecimento.

Desde o início de nossas pesquisas, acreditávamos que Benedicto teria feito parte do batalhão de soldados chamados "Voluntários da Pátria" da província de Minas Gerais. Sabíamos da existência de voluntários de cidades mineiras, particularmente da região sul do estado. Aiuruoca foi a que enviou maior número de voluntários, 95; Baependi, 21, dois deles identificados por nós: José Eufrásio de Toledo e Antonio José de Castilho Junior, avô do nosso querido padre Castilho, pároco de Caxambu; Campanha, 51; Itajubá, 11. Suspeitávamos que Benedicto poderia ter sido arregimentado na região, quando achamos sua certidão de óbito da paróquia Nossa Senhora dos Remédios, assinada pelo pároco João de Deus, em que constava que ele era "preto" e que teria morrido de marasmo senil (desnutrição causada pela idade). Tínhamos também uma certidão de batismo de 1907, em que ele constava como padrinho de batismo,  o que comprovava sua possível residência na cidade. Claret então solicitou no cartório civil a certidão de óbito (foto) de Benedicto, o que deu ruma reviravolta em nossas pesquisas e nos trouxe uma surpresa: ele não era de Minas Gerais e sim de Pernambuco

O alistamento

O decreto de 7 de janeiro de 1865 assinado pelo imperador D. Pedro II apelava para o patriotismo dos cidadãos para pegar em armas e lutar na Guerra do Paraguai, determinando a criação de corpos para o serviço da guerra em circunstancias extraordinárias denominado Voluntários da Pátria, e listava as vantagens como chamariz para aqueles das camadas mais baixas da sociedade pudessem se candidatar. Não sabemos (até agora) em quais condições Benedicto foi compor o exército de voluntários: se ele era "liberto" e se alistou por conta própria, ou se foi obrigado, como aconteceu em muitos casos. Uma explicação para que o império tenha arregimentado negros escravos em caráter emergencial e conceder-lhes alforria pelo decreto de 6 de novembro de 1866 foi a falta de voluntários brancos. Muitos dos fazendeiros "compravam" praticamente sua vaga, enviando seus escravos. A eles era dada a carta de alforria, e assim, talvez, Benedicto fora servir as tropas do império na contenda da Tríplice Aliança.

Minas na guerra
 
De Minas alistaram-se 2.541 voluntários, dos quais 1.459 se apresentaram em Ouro Preto, outros 349 em Uberaba e 733 foram diretamente para a Corte, no Rio de Janeiro. Depois seguiram até Uberaba, ponto estratégico de convergência das tropas vindas de diversas partes do Brasil. De lá partiram em um percurso de mais de 1.700 km, a pé e de barco, numa marcha prevista para 90 dias, mas que durou 540. Os militares enfraquecidos por fome, doenças e perseguição das tropas paraguaias, em junho de 1867, foram obrigados a recuar, no episódio conhecido como a Retirada da Laguna, que foi descrito por Alfredo d'Escragnolle Taunay (1843-1899). Em 1879, com a guerra terminada, os sobreviventes que faziam parte do 17° batalhão puderam voltar para casa, onde foram recebidos como heróis.

Nota do jornal O Baependiano de 1889
Havia uma forte presença de negros e mestiços nas fileiras do exército brasileiro, mas que até então não era aberto a escravos. A Constituição Imperial garantia que os seus respectivos proprietários não poderiam ser expropriados, que teriam que lhes dar a alforria antes de se alistarem, como no anúncio ao lado. O capitão Eugenio de Carvalho, natural de Tamanduá, hoje Itapecerica, se prontificou a ir e liberou cinco escravos para a contenda. Estava de passagem por Caxambu, como noticiou o jornal O Baependiano. Era comum que os escravos acompanhassem seus ex-senhores para prestar todo tipo de serviço, inclusive pegar em armas. Em 1867, os primeiros escravos libertos foram enviados ao front de guerra. Terminada a campanha, os ex-escravos, ainda que livres, teriam que prestar serviços ao seus antigos proprietários. Ao se alistarem escolhiam, ou eram induzidos a adotar, outro sobrenomes, portanto não sabemos se Benedicto realmente tinha sobrenome "Alves de Belém". Seria o mesmo Benedicto?

Maldita Guerra atrasa-nos meio século!(1)

A guerra travada entre  Argentina, Brasil e Paraguai foi o maior conflito internacional ocorrido na América Latina. Durou de 1864 a 1870. Os protagonistas dessa triste campanha militar foram Solano Lopez, que tinha um sonho expansionista de formar o "Grande Paraguai", abrangendo terras argentinas de Corrientes e Entre Rios, estendendo até o Rio grande do Sul e Mato Grosso. Foram cinco anos de lutas, durante os quais o Brasil enviou 150 mil pessoas entre mulheres, crianças e escravos. Desses, 50 mil não voltaram para casa. Os números são ainda controversos pela falta de pesquisa, arquivos perdidos. Morreram acometidos de fome, cólera, tifo e toda sorte de pestilências. Entre os que conseguiram retornar, estavam os mutilados, que tiveram de suplicar por suas pensões.

Com a guerra, a população do Paraguai sofreu uma violenta redução. Em 1870 havia um homem para cada 28 mulheres. Os três países perderam vidas entre civis e militares. Das 180 mil almas enviadas para a guerra, mais de 50 mil não voltaram; fora 18 mil argentinos e mais de 28 mil paraguaios cujo paradeiro ninguém tem notícia. Com o apoio da Tríplice Aliança, a Inglaterra aumentou sua influência na América do Sul. A indústria paraguaia foi dizimada, aldeias inteiras destruídas, terras abandonadas, vendidas, transformadas em latifúndios. A Argentina foi a principal beneficiária, anexando parte do território paraguaio. O Brasil, por sua vez, que financiou a empreitada através do Banco de Londres, viu suas despesas subirem às alturas, o que provocou uma crise financeira. 

O verdadeiro herói / Enquanto isso em Pernambuco

Em 1865 é organizado o primeiro batalhão de Voluntários da Pátria de Pernambuco, com 789 homens e em 26 abril embarcaram no vapor São Francisco em direção ao Paraguai. Ao percorrem as ruas, recebiam chuvas de flores das janelas. Flores...

Encontramos vários relatórios nos jornais, e um deles "— O (navio) Cruzeiro do Sul,  entrado no norte trouxe para a corte: de Pernambuco o 4° batalhão de artilharia a pé, com 147 praças e 10 oficiais, uma companhia de artífices com 24 praças e um official, uma companhia de cavalaria com  38 praças e 3 officiaes, o 2° batalhão de voluntários do Recife com 463 praças e 34 oficiais". Eram contingentes arregimentados e  levados de navio até a capital, Rio de Janeiro, de ondeseguiram para Montevidéu. 

Se Benedicto foi mesmo "listado" em Pernambuco, infelizmente não temos a menor pista. Para citar um exemplo, Ouricui, uma povoação encravada no coração do interior de Pernambuco, enviou 405 ouricuourenses para formar o 7° batalhão Corpo Voluntários da Pátria. Apenas 40 retornaram à região. Os números de soldados enviados, mortos, feridos é ainda controverso entre os historiadores. As fontes primárias são escassas e há necessidade de pesquisas. Não sabemos até agora qual o real status de Benedicto, sua situação como cidadão, se sofreu ferimentos, se teve família na cidade, se recebeu alguma pensão por ter lutado na guerra. Com muita sorte, Benedicto Alves do Belém conseguiu chegar são e salvo, vindo a falecer em Caxambu. Isso sim é que é ser herói, pois nos cinco anos de combates, enfrentando mais que lutas corpo a corpo contra o "inimigo". Na verdade os inimigos foram as longas marchas pela província, doenças, como a epidemia de varíola que assolou os soldados, fazendo as primeiras baixas antes mesmo de participarem de qualquer luta, a não ser pela própria vida.

Enquanto isso em Baependi / Uns lembrados, muitos esquecidos/ O veterano Antonio José de Castilho Junior

Após o término da guerra em  1881, o sr. Cornélio Pereira Magalhães, baependiano, membro da Assembléia Provincial, propôs uma emenda para um pequeno aumento do ordenado do fiscal da Câmara Municipal de Baependi, Antonio José de Castilho Junior, que era avô do padre Castilho, pároco muito querido na cidade de Caxambu, e  que prestara serviços militares na Guerra do Paraguai. Castilho, segundo O Baependiano "tomou parte nos combates mais mortíferos e mais notáveis daquela guerra tremenda, onde recebeu vários ferimentos".

Este emprego é exercido por um cidadão destino (apoiado do Sr. A. de Mattos), que durante a guerra do Paraguay prestou à pátria os mais relevantes serviços; foi um dos primeiros que marcharam para o Paraguay, alli fez toda a campanha, tomou parte nos combates mais mortíferos e mais notáveis daquela guerra tremenda onde recebeo vários ferimentos. Voltando este cidadão para a cidade de Baependi, a câmara municipal interpretando fielmente o espírito desse grande e imortal decreto do ministério de 31 de agosto de 1864 o nomeou imediatamente para exercer o cargo de fiscal que essa ali vago, visto ser elle um moço  pobre e que tinha sérios deveres a compara com sua família, segundo o espírito da lei, ter direito a preferencia. 

A solicitação se baseava no artigo 9° do decreto de 7 janeiro de 1865, que estabelecia a preferência na ocupação de empregos públicos por voluntários que haviam servido cinco anos na guerra. Esse era o menor dos problemas. Havia casos e casos. A falta de documentos comprobatórios agravava o descaso com os soldados que serviram na campanha. O labirinto para garantir os seus direitos, assim como os de seus familiares, era imenso e era pedido na burocracia governamental. As vozes dos inválidos, viúvas e órfãos foram sufocadas nas pilhas de requerimentos e petições dirigidas ao monarca, pleiteando promoções na carreira militar, bem como reajuste nos soldos, gratificações, empregos públicos, pensões, pedidos de muletas, passagens para locomoção, esmolas, condecorações. Era a indigência da administração imperial. Mas em Baependi, o apadrinhado do sr. Mattos  teve sorte, e foi nomeado para exercer cargo de fiscal na cidade.

Preto ou pardo?



A burocracia definiu Benedicto como "pardo", já a igreja tinha-o como "preto". Há vários sobrenomes "Alves de Belem" em diversas cidades, como Uberaba, Campanha, Araguari, Manaus, Pernambuco e... Tamanduá, hoje Itapecerica, onde o capitão Eugenio de Carvalho (acima) nasceu, e muitos sobrenomes como "Angola", "Benguela", "Cabinda" indicando a origem dos escravizados da região, mas não temos nenhuma prova de uma possível ligação com os respectivos nomes. Também folheei vários jornais da época, mas não encontrei nenhuma homenagem póstuma ao Benedicto; ao contrário, somente referiam-se aos generais e ao alto comando das tropas. 

Benedicto faleceu em 15 de outubro de 1927, com cerca de 100 anos, acometido de marasmo senil, sendo seu atestado assinado pelo médico, o dr. Mario Mihward, e assinado pelo escrivão Martinho Candido Vieira Lício, no estado de solteiro, na antiga Santa Casa de Caridade, fundada pelo padre João de Deus, ao lado da Igreja Santa Izabel da Hungria, em Caxambu (foto abaixo). 

Curiosamente, alguém ou alguma entidade de Caxambu, no final dos anos de 1920, mandou fazer uma lápide digna, esculpida em pedra ardósia, em sua homenagem. Como historiadores de plantão, o Claret e eu resolvemos não somente restaurar o Jazigo, como escrever sua história. Claret tomou providencias técnicas (e financeiras) e resolveu restaurar tudo por conta própria, preservando a originalidade do jazigo. Ainda bem, assim pudemos recuperar sua história e memória. Agora esperamos entregar aos cidadãos de Caxambu este monumento, e encaminharemos em breve para o Patrimônio Histórico o seu tombamento.


Notas finais sobre a festa do Barracão/ Um circo de cavalinhos

"O sublime sempre anda do lado do ridículo. Antes só podiam entrar os que tinha recebido cartão de convite. A maior parte d'eles, porém não comparecera. Depois entrou tudo. Pretos com saburás, sujeitos em mangas de camiza, muita gente sem gravata, todos entraram. No interior do barracão, que estava bem illuminado, encontrei várias rodas de meninos de collégio jogando o cabra-cega." 

A festa do Barracão, assim denominada pelo jornal A Comédia Popular, comemoração  oficial do acordo de paz da Guerra do Paraguai, em 1870. A construção do tal barracão foi dado de incumbência aos parentes, genros do ministro, barão de Muribita que esperavam ter lucro com a venda dos ingressos. As arquibancadas cobertas foram construídas ao lado do templo da Vitória, e eram destinadas ao público esperado para a festa, com a presença de dom Pedro II, Conde d'Eu e a digníssima princesa Izabel.  Mas o fiasco de público fez com que Sua Alteza liberasse a entrada para evitar olhar para as arquibancadas vazias. 

A festa foi tema de diversos jornais cariocas. Escrevia A Vida Fluminense: "Preparam-se coisas do arco da velha. No Campo de Santana perto da Casa da Moeda formigam os operários, os empreiteiros, e os artistas encarregados de levantar o grande templo de papelão destinado ao Tedéum que ali tem de ser cantado; noutros lugares erguem-se arquibancadas e galerias a imitação de um circo de cavalinhos."

Assim ocorreram as comemorações em que foram lembrados os nomes dos "heróis", o generalato, a nobreza, e a grande maioria dos verdadeiros heróis foi esquecida. Mas quem ganhou ou perdeu a guerra? Perderam (ou ganharam) os generais a guerra sozinhos?, pergunta Bertolt Brecht.

Foto:
Do arquivo privado de Antonio Maciel Claret
Fonte:
Barão de Cotegipe para o barão de Pennede, Rio de janeiro 12 de maio de 1866 (1)
Familie Search
RODRIGUES, Marcelo Santos,  in Guerra do Paraguai: Os caminhos da Memória entre a comemoração e o esquecimento, São Paulo, 2009.
RODRIGUES, Marcelos Santos in Os esquecidos da Guerra do Paraguai (1865-1875).
Noticiador de Minas: Órgão Conservador (MG) 1872 a 1873.
Jornais de Ouro Preto: Órgão do Partido Conservador (MG) 1884 a 1947.
Casanova, Marta Zednik  in Uberaba 200 anos no coração do Brasil.
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SABIONI, Antonio Claret Soares in Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai: A epopéia do 17° Corpo de Minas Gerais.
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TAUNAY, Alfred d`Escragnolle , in A Retirada da Laguna, 1871.
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SILVA, Wellington Barbosa da, in  Em nome da pátria e da Glória, a formação do 1° Corpo de Voluntários da pátria (Pernambuco, 1865).
DORATIOTO, Francisco in Maldita Guerra, Nova História da Guerra do Paraguai, SP, Companhia das Letras, 2022.
RAMALHO, Pedro Henrique de Moura, ALBUQUERQUE, Aline Emanuelle de Biase, in "Terra dos Voluntários da Pátria": uma investigação sobre e cidade Ouricuri durante a guerra do Paraguai (1865-1870), 2019.
SALLES, Ricardo in Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania em na formação do Exército, 1990.
CHIAVENATO, Julio in, O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai, 1980.
PARENTE, Marilia, in De Ouricuri para a Guerra do Paraguai: os voluntários que o povo esqueceu, Curiosamete, Internet.
Chronica dos principaes acontecimentos   concernentes á actual Guerra do Paraguay, in Folhinhas de Laemmert, 1865.
O Baependiano: Folha Scientifica, Literaria e noticiosa (MG) 1877 a 1879.
SILVA, Wellington Barbosa in Em nome da patio e da glória: a formação do 1° Corpo de Voluntários da Pátria (Pernambuco, 1865), Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Jornal do Recife (PE) 1858 a 1938.
A Vida Fluminense (RJ), 1870.
Diário do Rio de Janeiro (RJ) 1870.
O Correiro Paulistano (SP) 1870.
A Comédia Social: Hebdomadario Popular Satírico (RJ) 1870.
Agradecimentos: 
Julio Jeha, sempre
A Antonio Claret Maciel, historiador por hobby, que sempre curioso, nos presenteia com coisas, documentos, fatos, lápides e a gente é fisgado no anzol da vontade de contar as histórias. E de lascar!

Nota:
Antonio Maciel Claret, advogado, formado em 1975 pela Universidade de São Paulo. Autor dos livros: A Família Maciel em Baependi e a Saga do Tenente José Francisco Maciel, em 2016, e Memórias da Fazenda da Roseta e do Barão de Maciel, em 2019.
Solange Ayres, Licenciada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, e desde 2013 escreve o Blog Família Ayres, histórias e memórias da cidade de Caxambu e Baependi, juntamente com Graça Pereira Silveira, professora aposentada do ensino fundamental de São José dos Campos, São Paulo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Uma manutenção no telhado/ Um maço de cigarro da marca Continental/ Nossas lembranças

E se não fosse um maço de cigarro vazio achado na manutenção de um telhado para nos arremeter na velocidade da luz a 70 anos atrás, na residência do Dr Paiva, médico da cidade de Caxambu. Reproduzi aqui o comentário de Roberto Paiva, filho do já falecido Dr. Paiva, numa publicação no blog sobre as corridas de carro na cidade na década de 1950. Aí veio a surpresa e aquela dorzinha das lembranças guardadas no coração. 

Solange, lembro bem de algumas destas corridas... principalmente a que Cassini foi campeão... Seu pai, sr José Ayres, grande pessoa, ótimo eletricista muito amigo meus pais. Ele que fez toda a instalação elétrica aqui de casa, em 1953. O senhor profissional... tão competente que colocou uma "antena" em toda parte interna do telhado. interna do telhado. Qualquer lugar (tomada) que colocasse o rádio funcionava sintonizando várias estações. E tem mais! Quando "apareceu" por aqui a TV, em qualquer cômodo da casa era só ligar a  na tomada que sintonizava os canais da época. A pouco tempo fui fazer manutenção no telhado tiraram. Disseram que tinha um "arame " em volta casa toda. Não sabiam o porquê (a ignorância) e removeram. Acharam também um maço de cigarros, vazio, que estava escrito: Lembrança de José Ayres, eletricista. Como eu não estava aqui, jogaram fora. Pois é! Abraços. Roberto

Roberto querido, fiquei comovida com estas suas lembranças. É uma arqueologia do afeto. Elas  me remeteram à minha infância, dos cidadãos que faziam a diferença na cidade, tanto por parte de meu pai, José Ayres, eletricista, como do seu pai, o conceituado Dr. Paiva. O sobrenome era sempre lembrado lá em casa. Fui aluna no primário da eterna "tia Guiomar" no Colégio Normal Santa Terezinha. Estávamos em segurança, cercados de gente que cuidavam uns dos outros, prestavam seus serviços à cidade com honradez e honestidade; cada um na sua profissão. Gratidão por tudo. 

Saudações d`este país Alemanha.
Solange Ayres.

sábado, 5 de outubro de 2024

Rali Rio— Caxambu, 1954-1958, e as estrelas do automobilismo


Chegada do vencedor Henrique Cassini no Rancho das Acácias, Caxambu, 1954

E nós íamos lá saber que Caxambu abrigou um calendário de cinco ralis, as corridas chamadas Rio—Caxambu? Para conferir a veracidade ou lembrança dos tais eventos, recorri a Wander Silveira, marido da Graça Silveria, aqui do Blog, e ele confirmou: "— Era criança, tinha uns 10 anos. A corrida era no 7 de setembro. Vi os Simcas conversíveis. Era organizado pelo [hotel] Glória." Bastou seguir a pista e fomos escarafunchar os fatos.

Os eventos automobilísticos aconteceram em datas comemorativas da cidade, 7 e 16 de setembro, entre 1954 e 1958, organizados pelo Automóvel Club do Brasil com o objetivo de incentivar a indústria automobilística. Em 1954, 55 e 56 elas aconteceram no Dia da Independência, 7 de setembro, as de 1957 e 1958 no aniversário da cidade, 16 de setembro. Nos anos de 57 e 58, os motores dos pilotos famosos estavam roncando nos 500 quilômetros no autódromo de Interlagos, nos 7 de Setembros, não mais em Caxambu.
 
A Rio-Caxambu

As corridas tinham uma organização incomum. Os corredores encontravam-se um dia antes no quilômetro 4 da Via Dutra, na altura de Engenheiro Passos. A largada acontecia no dia seguinte, às 7:30, com  intervalo de 2 minutos para cada carro. Os participantes percorriam 295 quilômetros, atravessando a serra de Itatiaia O Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) fechava o trecho para carros de passeio, deixando as pistas livres para os corredores. O percurso era considerado "difícil", pois acontecia em parte na Dutra e em parte nas estradas vicinais. O seu traçado serpenteava pela serra, em direção a Minas.

Os corredores chegavam pela avenida Getúlio Vargas, sendo o ponto final da corrida o Rancho das Acácias. Rancho? Das Acácias? Sim. O rancho era ponto de encontro da nata da sociedade caxambuense e muito querido pelos veranistas. Lá foram recebidos os artistas que vieram para o festival de cinema no ano de 1956. David Nasser, que ficava hospedado no Palace Hotel, ia ao Rancho comer um churrasquinho (1). Foi lá que escreveu  o samba "Estranho Amor", gravado por Dircinha Batista em parceria com Garoto, lançado em 1951.
O meu pai José Ayres tinha outra opinião sobre o local: "— É lugar de perdição." A má fama e desconfiança talvez viessem por sua localização, um lugar relativamente ermo, na subida da estrada federal e escuro, pois os quiosques com teto de sapê foram construídos sob as altas árvores, que dificultavam a iluminação.

A Rio—Caxambu, edição 1954

A primeira prova da Rio—Caxambu ocorreu em 1954 e contava com os "volantes", digo pilotos, Artur de Souza, campeão das "Cem milhas do Maracanã", Osmar Fernandes, campeão de Subidas de 1954, Álvaro Xavier, Euclides de Brito, Augusto de Campos, Alvaro Niemeyer, José Câmara de Souza Costa, Celso Lara Barberis (vencedor dos 500 quilômetros de Interlagos), o mineiro Henrique Casini, Godofredo Vianna Filho. Uma constelação de estrelas do automobilismo! Eles representavam os ricaços do Rio e São Paulo de alto poder aquisitivo que podiam comprar carros e fazer deles um caro hobby: as corridas. A corrida era composta das seguintes categorias: Esporte Livre, Turismo cilindrada livre, Turismo até 2.000 CC e Turismo até 1.300 CC. O vencedor da prova foi Henrique Casini com tempo de 2 horas, 31 minutos e 13 segundos, na categoria "Esportes".

Henrique Cassini, o vencedor da corrida Rio-Caxambu de 1954

Henrique Cassini nasceu em Passagem de Mariana, próximo a Ouro Preto, em 1898. Ele era um rico industrial e comerciante. O início de sua carreira esportiva se deu já em avançada idade aos 33 anos. A primeira corrida de que participou foi em 1933, e se tornou, com Celso Lara Barbéris, um dos astros do automobilismo do Brasil, disputando corridas quando já tinha se tornado avô. O Jornal da Noite descreveu o vencedor da prova do "Circuito da Gavéa", no Rio de Janeiro assim: "O novo campeão da Gávea já é vovô." Em 1954 participou de várias provas no Brasil, e juntamente com o amigo Chico Landi foi à Itália, onde participou de duas corridas. 
 
A sua primeira participação de uma corrida, depois da viagem foi a prova Rio—Caxambu da qual saiu vencedor. Seu currículo é extenso, campeão de provas conhecidas nos circuitos da Gávea, Rio de Janeiro, Petrópolis, Maracanã, Campeão brasileiro do ano de 1958. Em 1960 foi a sua última participação numa corrida no "Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro", quando, apesar de sofrer um acidente, completou a prova em 4 ° lugar. Nas décadas seguintes passou a dedicar-se à indústria e colaborando eventualmente com a organização de provas e ralis. Faleceu em 25 de janeiro de 1981 com quase 82 de idade.

A Rio-Caxambu edição 1956/ I Prêmio Juscelino Kubistchek

Barbéris recebe o troféu das mãos de José de Segadas Vianna, Caxambu 1956

Da corrida de 1955 não temos notícia, mas a de 1956 sim, com o recorde da prova superado pelo piloto Celso Lara Bareris na categoria "Esporte Livre", dirigindo um Ford Thunderbird com o tempo de 1 hora, 7 minutos e 30 segundos, seguido por Domingos Otolino num Jaguar XK 120. Nessa prova Henrique Casini, que vendeu seu carro a Jair Vianna  venceu na categoria "Turismo", perdeu o lugar exatamente para o novo proprietário do carro. Essa prova foi denominada I Premio Juscelino Kusbishek, já dizendo a que veio. Era uma homenagem ao presidente do Brasil eleito para o mandato de 1956 a 1961. Assim como todo evento automobilístico tinha a atenção dos políticos. Não faltou nenhum no evento, demonstrando o peso político que a cidade tinha na época. José de Segadas Vianna, ministro do Trabalho  Indústria e Comércio no governo Getúlio Vargas, se fez presente na entrega dos troféus (foto). Ele fora recentemente nomeado para presidir a comissão da organização do calendário automobilístico de 1956; foi eleito deputado constituinte pelo Rio de Janeiro; era jornalista e foi coautor da elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.

Celso Lara Barbéris, o vendedor da Rio-Caxambu de 1956

Aqui destacamos o vencedor do rali Rio—Caxambu de 1956, Barbéris e sua admirável carreira como esportista. Nascido no interior de São Paulo  em 1917, era filho de um médico italiano, natural de Turim e fazendeiro na região. Mudou-se para a capital para estudar e iniciou a prática de esporte como nadador e remador. Chegou a ser convocado para representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936 no remo "double-skiff", mas uma intoxicação o impediu de embarcar. Em 1945, aos 29 anos, mudou-se para Avaré, São Paulo, assumindo a administração da fazenda de café de sua família, e em 1949 iniciou sua carreira no automobilismo, tornando-se uma estrela nacional. Em 1963, na prova "12 Horas de Interlagos" sofreu um acidente fatal. A roda de seu carro foi tocada pelo carro do piloto Amaral Junior. O carro rodou e foi de encontro ao barranco, capotando várias vezes. Os carros não tinham cinto de segurança. Barbéris foi lançado fora do veículo, sofrendo fratura no crânio e esmagamento do tórax.

A penúltima versão do rali Rio—Caxambu/ano 1957

A versão de 1957 foi realizada na data comemorativa do aniversario de cidade, 16 de setembro. O jornal Diário Carioca nominou os participantes e anunciou os grandes nomes do automobilismo nacional. Novamente eles, Barbéris, Casini, Godofredo Vianna, Euclides, Mario Olivetti  que competiram em diversas categorias, Esporte Força Livre, Turismo Força Livre Turismo até 2 litros, Turismo até 1.300. Três participantes não especificaram os seus carros: Barbéris, Melo Vianna e Armando Silva. Mesmo com a constelação de astros anunciados, não há maiores informações sobre a corrida e os seus vencedores. 

A última versão do Rali Rio-Caxambu/ano 1958

Tudo parece que o rali Rio—Caxambu de 1958 foi a última tentativa de emplacar a cidade nos circuitos de corridas nos concorridíssimas eixos Rio-São Paulo, que tinham mais prestígio que a hidrópolis do sul das Minas Gerais.  Nas competições de 1957 foram anunciados os participantes, mas o mesmo jornal não teve a preocupação de anunciar os vencedores da prova. Na biografia de Mario Olivetti ficamos sabendo que ele que teria ficado em segundo lugar na corrida, nada mais. Isto comprova a pouca importância que tiveram as corridas, mesmo com políticos apoiando a iniciativa. Todos tinham olhos somente para Interlagos e as grandes corridas, em que os gordos prêmios eram pagos aos corredores. Assim o Rancho das Acácias voltou à normalidade, recebendo nas noites o público que gostava de gozar a vida  sem barulho de automóvel.

Fonte:
NASSER, David, in Aconteceu comigo no mar - Revista o Cruzeiro 1928 a 1985. (1)
O Jornal (RJ) 1950 a 1959
Manchete (RJ) 1952 a 2007
Última Hora (RJ) 1951 a 1984
Motor (RJ) 1940 a 1957
A Gazeta do Rio de Janeiro
A Noite (RJ)
Jornal dos Sports (RJ)-1953 a 1959
Diário Carioca (RJ) 1953 a 1965
Almanaque dos Desportos (RJ) 1957 a 1965
Site Pára-Choque, internet
 
Agradecimentos:
A Julio Jena, sempre

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Cremeria Caxambu/ Caxambu da água com queijo



 se
O susto foi da resposta da tia Célia, nossa biblioteca familiar. --Tia, a senhora se lembra da Cremeria de Caxambu? De Angelo Pellizzone? -- Claro, a filha dele Nilda Pellizzone estudou comigo no Colégio Normal. A família morava na rua paralela à Camilo Soares, ali pelo lado de cima. Pellizzone era alto, de meia idade. Veio como foi. A família se mudou e nunca mais ouvimos falar. O Luiz (Ayres) namorou a vizinha deles, Maria Machado. Queijo era caro. O papai comprava manteiga lá quando fazia uns serviços extras e ganhava um dinheirinho. Só assim podíamos comer manteiga. A filha da tia Mariquita, a Luiza, trabalhou lá por algum tempo.

O pioneiro Sá Fortes

Mas antes temos que contar a história dos primórdios da indústria de laticínios no Brasil, cujo precursor foi Carlos Pereira de Sá Fortes, nascido no Alto da Mantiqueira, no município de Barbacena. Sá Fortes se formou pela faculdade de Medicina no Rio de Janeiro e, de volta à sua terra natal, em 1888, teve a iniciativa de fundar a primeira fábrica de laticínios do Brasil e da América do Sul, mais precisamente na serra da Mantiqueira, que tinha como produto queijos "do tipo holandês". A matéria prima vinha em parte das fazendas de propriedade de sua família. O maquinário foi importado da Holanda, bem como a mão de obra, e, como em muitos empreendimentos, não logrou êxito de imediato. Mas com esforço e dedicação, não desistiu da busca da qualidade empreendendo uma viagem à Europa, para aprender e ver de perto os avanços da indústria de laticínios. A fábrica da Mantiqueira foi a primeira formadora de mão de obra especializada, recebendo os interessados em conhecer as técnicas de industrialização do leite, matéria prima espalhada pelas fazendas. Os primeiros técnicos da fábrica da Mantiqueira criaram novos laticínios, gerando progresso na região. Em 1913 Sá Fortes teve a iniciativa de expandir a Companhia de Lacticínios da Mantiqueira, tornando-a subsidiária da Companhia Brasileira de Lacticínios, que tinha como sócios poderosos empresários, dentre eles Raul Leite.

Minas se reinventando no início do século

Com o fim da escravidão e a queda da atividade mineradora dos séculos passados, Minas agora tinha que se reinventar e se diversificar. As economias regionais, caso do sul do estado, se fortaleceram, se especializaram e se tornaram responsáveis pelo abastecimento regional e das grandes cidades, como Rio e São Paulo. Leite tinha de sobra. A mão de obra imigrante, incentivada pelos políticos para substituir não só a mão de obra escrava, mas também para "embranquecer" a população, foi fator de impulso para a economia. O Sul de Minas foi a principal região de imigração italiana no final do século, que veio trabalhar não somente na lavoura, mas também ocuparam os centros urbanos, oferendo seus serviços em atividades profissionais e comerciais. Foi o que aconteceu com Angelo Pellizzone, agora era chefe da confecção de queijos da cidade, e, mais tarde, substituído pelo dinamarquês Axel Sorensen.
Em 1924 Jaime Leite era o gerente e "guarda livros" da Cremeria, isto é, era quem fazia a contabilidade do estabelecimento.

A fundação

Jornal A Noite, 1921; Virgo Potens, Google, 2022.

A Cremeria Caxambu foi fundada por Raul Ferreira Leite e Angelo Pellizzone, italiano radicado no Brasil, e inaugurada em 1º de maio de 1921. Nos seus primórdios, ocupava um prédio com duas casas laterais (foto acima), hoje a Virgo Potens, na rua Dr. Viotti, 30, e tinha como gerente o capitão Arlindo de Mello  e o funcionário de origem italiana, Francisco F. Giglio.

Caxambu estava em ascensão como estância hidromineral e florescia com as reformas urbanas na administração do prefeito Camilo Soares (1909-1914), quando o centro da cidade foi embelezado, o Bengo canalizado e o Parque das Águas, a joia da cidade foi tratado como tal. A hidrópolis se tornou destino dos aquáticos, políticos e capitalistas, principalmente do Rio e São Paulo, o que possibilitou diversificar sua economia. Em 1928 a Cremeria de Caxambu constava na lista das "principais indústrias dos municípios e seu maiores estabelecimentos" junto com Empresa das Água de Caxambu. Portanto era água e queijo. 

Queijo, saúde e política

Raul Leite devia conhecer bem as qualidades da cidade para escolher Caxambu
para instalação de sua cremeria. Em 1915 era visto no Parque das Águas,
gozando de uma estação de veraneio (o terceiro sentado da direita para a esquerda).

Raul Ferreira Leite nasceu nos Matos de Passa Tempo, termo da Vila de Oliveira, comarca de São João Del Rei. Em 1886 graduou-se em farmácia e, em 1912, formou-se em medicina. Iniciou sua carreira como comerciante de laticínios no Rio de Janeiro. Raul Leite era da safra de médicos empreendedores. Ele foi o fundador e proprietário da Leiteria Bol, criada em 1913, que funcionava na Rua Gonçalves dias, no Rio de Janeiro. Já nessa ocasião, seu estabelecimento funcionava sob rigorosas condições de higiene. Ao instalar sua leiteria, impermeabilizou as paredes com ladrilho e esmalte, tornando-se modelo para as casas similares  na cidade e adotando o sistema de pasteurização do leite. A leiteria Bol vendia, além do leite pasteurizado e homogeneizado, manteiga fresca, fabricada com creme pasteurizado. Raul também  fundou, em 1921, o Laboratório Raul Leite, a maior organização químico-biológica da América do Sul, que em poucos anos era o orgulho da indústria farmacêutica brasileira. Raul Leite editava um almanaque em que tratava de temas como aleitamento materno e cuidados com a saúde, e conseguia atingir milhares de famílias com suas publicações. Participava  ativamente da Ação Integralista surgida em 1930, fazendo parte da Câmara dos 40 criada. O Integralismo tinha simpatia pelo fascismo internacional, de tendências  autoritárias e antiliberais, e serviu de suporte a Getúlio Vargas, até romper com ele por divergências políticas.

Caxambu na década de 1930

Anúncio da Gazeta Popular,1931

Na década de 30 a Cremeria de Caxambu floresceu. Estávamos na Era Vargas. Em 1931 Raul consegue a isenção de impostos para importação de maquinário, data de sua expansão. No mesmo ano, a Cremeria participa da Feira internacional de Amostras, no Rio de Janeiro. O Jornal do Comércio noticiava que o empreendimento processava 19 mil litros diários de leite! Com o aumento de capital, a fabricação foi  ampliada em "larga escala". Segundo o jornalista, os excelentes produtos já estariam substituindo com vantagem os similares estrangeiros. Em onze anos já ocupava "vasta casa", noticiava o Jornal do Brasil. Foi a pioneira na fabricação de queijos tipo Gorgonzola e Roquefort. 

No documento acima podemos ver como era ela nos seus primórdios, antes de se transformar na "vasta casa" (foto ao alto), citada pelo jornal. Os produtos eram queijos, lactose, leite em pó e condensado, além de outros derivados do leite. A estrutura da região, composta de pequenas fazendas baseadas na pecuária, fornecia matéria prima para o fabrico de queijos. Se nos séculos passados, a produção sul-mineira era transportada no lombo de muares, agora chegava rápido aos seus destinos, pois tinham a ajuda dos trilhos de ferro. 

Em 1933 o número de sócios e assistentes da Cremeria se multiplicou tanto na quantidade como na qualidade. O time de especialistas preocupados com a qualidade dos seus produtos era Paulo Ganns, professor de química orgânica do curso de Química Industrial e Agrícola Floriano de Azevedo, M. Rangel, Lélio Carlos, Julio Vieira de Mello, John C. Kerk Vliet e J. Moreira Vasconcelos. A direção do empreendimento estava confiada ao farmacêutico professor Francisco A. Panza, tendo Raul Leite, na parte industrial, Angelo Pellizzone como queijeiro mestre, Paulo Ganns professor e químico assistente do Instituto de Química do Rio de Janeiro, o professor e bacteriologista dr. Marcos Magalhães. Era a primeira vez no Brasil que uma indústria de laticínios se orientava como rigorosa organização científica, o que já era comum em todos os países adiantados. A filosofia da higiene e saúde fez parte do discurso nacionalista na primeira metade do século XX, justificando assim tantos "doutores" que se ocupavam da Cremeria. Era sinal de que eles levaram a sério suas tarefas e assim colheram, por algum tempo, os frutos de seu trabalho. Os que trabalhavam na produção tinham que apresentar "exames de sanidade", isto é atestado de boa saúde.

Na Feira Internacional de Amostras realizada no ano de 1932, no Rio de Janeiro, o trabalho dos cremeiros recebia só elogios. Quase todos os produtos eram fabricados por maquinários e primava pela higiene, garantindo a qualidade para os consumidores. Os produtos eram também apresentados em feiras agropecuárias de São Paulo. Caxambu exportava não somente água mineral, mas também queijo.

Que-Bocó das Minas

Em  agosto de 1932, o Jornal do Comércio publica uma solicitação de uma marca incomum de queijo: Que-Bocó, feito por Raul Leite, e em junho de 1933 pede registro de marca Lebel para a classe 41. Era o time tentando inovar. No mesmo ano a Cremeria é obrigada a pagar uma multa no valor de 50$ na recebedoria do Distrito Federal relativa a impostos federais atrasados.

Rua da Conceição, 28/Cronologia dos acontecimentos

Em 1933 Alvaro de Carvalho, morador do sobrado onde funcionava o depósito da Cremeria de Caxambu, no Rio, levou um susto. Houve um principio de incêndio, provocado por uma lata de parafina quente. O incidente não causou estragos maiores, pois o fogo foi apagado pela corporação da estação central. O tenente Duque Cesar não teve muito trabalho, já que os empregados contiveram o início do incêndio. Foi assim que ficamos sabendo que a Cremeria de Caxambu tinha um dos seus endereços comerciais na Rua da Conceição, 28, no centro do Rio de Janeiro. (façam uma visita virtual, a rua continua como no início dos anos de 1930, inclusive o sobrado)

No mesmo ano, o Jornal do Brasil tecia elogios aos queijos. A reportagem visita a Cremeria e relata seu desenvolvimento desde sua inauguração há 11 anos, e destacava o queijeiro italiano Pellizzone, que se orgulhava de sua origem italiana e do seu trabalho. Mas em janeiro de 1934, a Cremeria aparece na lista de falências, concordatas e liquidações, do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.  O Banco do Brasil igualmente faz uma cobrança pública, cujos títulos deveriam ser pagos em 15 dias. Em 25 de setembro de 1934, a Cremeria ainda se fez presente no  Pavilhão Mineiro da Feira Internacional de Amostras, no Rio .

Em 1934, em meio a dificuldades econômicas, ela ainda inovava na produção de queijos e seus derivados com uma grande diversidade, como Provolone, Fontina, que era a especialidade da Cremeria, Parmesão, Prato, Golf, dentre outros, além da manteiga, leite condensado e lactose. O empreendimento logrou ter seus produtos representados em todos os estados da União graças aos trilhos da Rede Mineira de Viação. Existiam pontos fixos de vendas no Rio de Janeiro, como na rua dos Andradas, 117, na rua do Ouvidor, em São Paulo, Rua Benjamim Constant, 50 (faça uma visita ao tempo), e em Santos.

No início de 1937, parecia que a crise tinha sido superada, e na Era Vargas, a Cremeria estaria consolidada tendo ainda Raul Leite à frente do empreendimento. Segundo o jornal Imparcial de 11 de novembro eles trabalhavam alguns milhares de litros de leite provindos das fazendas próximas. No período do verão, considerado de alta  estação, trabalhavam 30 pessoas, podendo chegar a 50, dependendo da produção. Na época estava a cargo da fabricação de queijos não mais Pellizzone, mas Sebastião de Almeida, tendo dr. Paulo Ganns como químico. Joaquim Ferreira Leite, rico fazendeiro, dono de terras entre Caxambu e Conceição do Rio Verde era um de seus fornecedores. Ele tinha a vantagem da principal estrada de ligação entre as cidades atravessar suas propriedades, facilitando assim o escoamento do leite que rapidamente podia ser trabalhado. Tudo parecia que ia bem até que...

A Era Vargas/Queijo e política/O fim da Cremeria Caxambu Ltda

Nas tabelas do IBGE de 1937, constavam os três principais produtos industriais de Caxambu: águas minerais, queijos e manteiga, significando 79,7% de sua produção e empregava  10 pessoas com um lucro de 418.284 contos de réis.

Mas as aparências enganavam. Já no dia 16 de junho de 1937, o juiz Brotero Antonio do Pilar Cobra, juiz de direito da Comarca de Baependi, abriu processo para a dissolução e consequente liquidação judicial da Cremeria, a pedido pelo próprio Raul Ferreira Leite, com fundamento no artigo 336 do Código Civil. O motivo alegado era a sociedade não podia preencher o intuito e fim social decorrente da situação  de concorrência e da retirada de pessoa encarregada da parte técnica, além sucessivos prejuízos nos balanços anuais. Os sócios cotistas Angelo Pellizzoni, que agora residia em Itanhandu, Paulo Ganss, Noeme Salles Ganns, Aureliano Machado, Floriano Peixoto de Azevedo, João Edmundo Moreira de Vasconcelos, Mario Cesar de Freitas Rangel, Julio dos Santos Vieira de Mello, residente no Rio de Janeiro, e José Sebastião Gama, residente em São Paulo foram convocados a se manifestarem juridicamente. O  jornal O Imparcial não fez jus ao seu nome, pois o empreendimento já  apresentava problemas para fechar suas contas. Não podemos detectar aqui quais as reais causas  do seu fracasso, que outrora tinha conseguido tanto sucesso. Os problemas administrativos podem ter sido causados pela ausência de gerenciamento, já que que Raul Leite tinha não somente inúmeros empreendimentos, mas também estava profundamente envolvido nas questões políticas nacionais.

Coincidentemente nesta data foi instaurado o Estado Novo (1937-1945) deflagrando uma ditadura no governo Vargas que aboliu as liberdades democráticas, os direitos de políticos e civis. Muitos dos integralistas foram perseguidos, presos e torturados, perdendo seus cargos públicos, dentre eles Raul Leite, que foi preso em sua casa. Em 27 de maio de 1938, a Associação Integralista Brasileira passou à ilegalidade juntamente com outros partidos, devido ao Golpe  de 1937 e a instalação do estado de exceção. Em 1938 Plínio Salgado envia uma carta a Getulio, com cópia a Raul Leite, fazendo um desabafo, relatando o trabalho que desenvolveu para o país, mantendo escolas, assistência médica, exames de analise clínica para os pobres e premiando alunos de medicina. Estava ressentido quanto ao tratamento "sem qualquer respeito" a que fora submetido durante o tempo que permaneceu preso. Raul teve papel de destaque no movimento, participando de um dos seus principais órgãos, a Câmara dos Quarenta, criada em 1936. Faleceu de um ataque cardíaco, em 23 de janeiro de 1939, em visita a uma fazenda na Bahia, talvez segundo sua enteada, em consequência do sofrimento nos dias de prisão (1). Seu corpo embalsamado foi velado na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro do qual era membro destacado.

Um edital de 1° de abril/ Quatrocentos e trinta e nove contos/A liquidação/
Um bairro chamado Pelizzone

Cremeria Caxambu, década de 1930/Arquivo privado da família Sorensen

Parecia mentira, mas não era. No dia 1 de abril de 1939 os bens da Cremeria Caxambu Ltda são colocados no pregão para serem  leiloados e assim pudemos ter, através da lista de bens, a dimensão do trabalho de Raul Leite e seus parceiros econômicos. Houve um enorme investimento financeiro e tecnológico para  modernizar e produzir com qualidade e foi não somente uma perda econômica para cidade, mas uma perda inestimável de conhecimento. Todo o tipo de maquinário elétrico, inclusive caras máquinas importadas da Alemanha e Suíça, um  arsenal técnico que significou anos de aprimoramento de trabalho, estava sendo vendido. Tudo, tudo.

E a Cremeria de Caxambu? Após a liquidação ela continuou a funcionar, agora sob nova direção. Em 1940, o jornal Nação Brasileira exalta as qualidades e belezas da cidade dando destaque à Cremeria, dentre os 78 empreendimentos que compunham o quadro econômico da cidade. Ela foi adquirida pelo dinamarquês Axel Sorensen (1896-1963) que a administrou  até o ano de 1945 trazendo para trabalhar Emil Jensen. Segundo Julio de Almeida Lima, genro de Axel, os fornecedores de leite naquela época eram Juca Leite, Jordão e Comendador Pereira. 

Sorensen vendeu a Cremeria, e aqui aparece o penúltimo protagonista, Heitor Levy, que adquiriu as instalações e continuou a fabricar queijos. Ele foi proprietário da Casa Levy, uma loja de armarinhos de Caxambu que imprimiu inúmeros postais da cidade com sua marca. Levy sofreu um grave acidente e teve que abandonar o negócio. 

Se em 1931 o Diário de Notícias faz referência ao efeito positivo do empreendimento para a cidade: "Desde que Leite e Pellizzoni construíram a Cremeria na vargem da estação, multiplicaram-se rapidamente as construções particulares, embelezando aquela zona, que é mais um ornamento de graça para a nossa encantadora cidade". Anos mais tarde, porém, a vizinhança começava a estranhar o empreendimento. Curiosamente, o jornal Correio da Manhã, de 1935, noticiava o carnaval de Caxambu, e a saída dos cinco blocos carnavalescos que iriam percorrer a cidade com concentração no... Bairro Pelizzone.

O que antes era fonte de elogios, agora tinha votos contrários. Com a expansão da cidade, foram construídas residências no seu entorno, e exatamente por isso se tornou um problema. Segundo Julio Almeida Lima, naquela parte da cidade havia muito movimento de tropas de burros transportando leite. O barulho das latas era grande. Havia muitas reclamações contra do cheiro exalado na fabricação de caseína, proteína do leite, "que ia longe, fervendo naqueles recipientes de cobre até virar pó (leite em pó). Cheirava queijo até no Ginásio". O empreendimento parecia que não teria mais futuro e foi pedida a suspensão dos seus trabalhos.


Notícia do Jornal O Patriota de 1948

Citamos o penúltimo protagonista, pois o último foi a Indústria Caxambuense Sallum Ltda a ocupar o local, onde era fabricado o "Guaraná Caxambu". As instalações foram vendidas para a família de José Sallum  e foram transformadas em fábrica do guaraná Guaranita. Posteriormente foi ocupada por uma instituição católica se transformando na escola Virgo Potens. No antigo prédio da Cremeria agora funcionava a instituição escolar foi declarada por decreto de utilidade pública, assinado em 1963 pelo governador Magalhães Pinto. 

O humor centenário

Para tentar encerrar o texto, numa segunda bateria de perguntas à minha tia,  na tentativa de identificar os fotografados acima, quem era quem. -- Tia, a senhora conhece os fotografados? A tia Célia, já com dificuldades de enxergar devido a uma catarata, retrucou: -Não consigo reconhecer ninguém. Seu pai conhecia. Só conseguiremos saber quando você levar a foto para ele lá no além. Risos gerais. Do sr. Pelluzzoni, posso agora entender a resposta lapidar de tia Célia sobre o seu paradeiro: "-Veio como foi e nunca soubemos do seu paradeiro". 

Fonte:
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 1931
Gazeta Popular (SP) 1931 a 1938
Vida Doméstica (RJ) 1920 a 1962
Almanak Lammert - Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ) - 1891 a 1940
O Paiz (RJ)  1939 a 1934
A Noite
O Campo (RJ) 1930 a 1952
O Malt 1904
Para Todos (RJ) 1919 a 1958
Vida Doméstica (RJ) - 1920 a 1962
O Imparcial (RJ) - 1935 a 1939
Nação Brasileira (RJ) - 1923 a1947)
Correio da Manhã (RJ) - 1936 a 1939
Jornal do Brasil (RJ) - 1930 a 1939
A Offensiva (RJ) 1936
O Jornal (RJ) 1920 a 1926
Il Pasquino Coloniale, 1936
CASTRO, Luciano in, A indústria de transformação no Sul de Minas Gerais, 1907-1937
MAGALHÃES, Maria das Graças Sandi, USF, in Higiene e cuidados com a criança: As lições dos Almanaques de Farmácia 1920-1950
GOMES Angela Maria de Castro, in Escrita de si, escrita da história, FGV, 2004.
Wikipedia
Serie Entrevista IX - Sra. Liden Maria de Olveira Carvalho in  Memória e História da política Nacional por Jorge Figueira, in blog (1)
CHEIBUB Ana Maria de Souza Santos, in O III congresso sul americano de química e a importância da química no Brasil na década de 1930, 2013.
Furtado Mucio in, Queijos Semicurados, maio 2019
ALBUQUERQUE Luiza Carvalhaes, in Carlos Pereira de Sá Fortes - Fundador da indústria de laticínios no Brasil, in Ciência do leite, web, 2012.
RIBEIRO, José, in História de nossa terra: A fábrica da Mantiqueira, in Barbacena on-line, 2022.
 
Indicador Agro Pecuário, industrial e bancário de Minas Gerais
Foto:
Dom Quixote, 1918
Revista Fon-Fon
Cremeria, 1930, arquivo privado da Família Sorensen
 
Agradecimos:
Agradecimentos muitíssimos especiais e piedosos a Julio Jeha, que intermediou nosso contato com a família Sorensen na obtenção de preciosas informações que agora fazem parte deste texto. A Julio,  e Erik Sorensen em entrevista telefônica Brasil/Alemanha em 2022.
A minha inesquecível tia Célia Ayres de Lima e seu ácido humor.