quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O universo de Arminda



Nascida na cidade de Baependi, mais precisamente na região que hoje é chamado "Gamarra", a 15 de agosto de 1922, filha de Sebastião Gomes Francisco da Luz (1892-1951) e Vitória Maria da Conceição (1898-1958), suspeitava que poderia ser um pouco mais velha, pois o seu pai não a registrou assim que nasceu, e sim esperou anos para fazer  registro de todos os irmãos e irmãs juntos.



Vaca na cozinha 

Primeira casa onde Arminda trabalhou
Rua Manoel Joaquim, Baependi, 2004
A vida na roça vivida tinha horas alegres, tristes e horas de muito trabalho, plantando e colhendo.   A época da colheita era a melhor época, principalmente no campo das melancias, quando as crianças as deixavam rolarem morro abaixo. Era bronca na certa. Dentre muitos afazeres diários executados também pelas filhas como descascar mandioca para fazer polvilho, colher arroz, milho, sua mãe Vitória, resolveu criar uma bezerra rejeitada. Resultado: Em dias frios aquela baita vaca entrava cozinha adentro  poc, poc... procurando, o calor do fogão à lenha. Imaginem a cena.

Até os seus 20 e poucos anos trabalhou arduamente na roça   para ajudar os seus pais e um dia a vida tinha que mudar. Como não teve oportunidade de estudar, não restou outra alternativa que trabalhar de doméstica em casa alheia. De Baependi (foto) ela foi parar em São Paulo. Contava que nas suas horas de folga nos domingos, ia com outra colega passear pela cidade, freqüentava o cinema e acompanhava a família à praia nos verões de Guarujá no final da década de 1940. Contava ela com saudade deste tempo, da São  Paulo vivida e suas possibilidades culturais que limitadamente aproveitou.

Teria ela passado por esta praça de Guarujá?

A lâmpada e a esposa 
Arminda Maria Ayres e José Ayres, 1960

Acometida por uma anemia e de volta à Caxambu, quando os seus patrões faziam estação de veraneio na cidade, conheceu o meu pai, José Ayres,  já viúvo, quando ele foi instalar uma lâmpada na casa do seu patrão e ali "acendeu a faísca". Era tempo de Semana Santa e eles se encontraram em frente à igreja, perto do carrinho de pipoca do Seu Dodô. E assim iniciou o romance de curta duração. Casaram-se discretamente em 1949, sem pompas, igreja e... com alianças emprestadas. O meu pai prometeu comprar-las posteriormente, o que ficou somente na promessa. Em 1952 veio sua primeira filha ao mundo e em 1960, oito anos depois eu; assim meu pai constituiu sua segunda família.

Semana Santa, dos vivos e dos mortos

Os dias iluminados do mês de março  se tornavam mais curtos e as noites um mistério ocupado pelos espíritos e assombrações. As tardes acabavam em raios, trovões, ventos e fortes tempestades desciam do Morro, derramando água sobre a cidade. Em seguida o vento Mistral frio limpava o céu e o que se via era um azul-anil estupendo e noites estreladas. No alto a constelação do Cruzeiro do Sul, as Três Marias. Eram dias e noites de muito frio, tempo da quaresma. As comemorações religiosas chegavam ao seu ápice na Semana Santa. Os postes e suas lanternas, os denominados "tomates na ponta da vara" por meu pai, jogavam uma luz amarela e ténue sobre as ruas e portais das casas, como se o próprio Coisa Ruim quem tivera acendido as lâmpadas, para mostrar a verdadeira face da escuridão. Um estranho sentimento de culpa tomava conta da mente dos crentes e religiosos. Os fiéis retornavam às suas casas após as profissões percorrendo as ruas desertas e  o medo enchia de fantasia o universo de Dona Arminda.

Procissão de Sexta Feira Santa, Caxambu  
O temor a Deus era tão grande quanto ao diabo e qualquer sombra da noite se transformava em alma penada ou coisa parecida. Assim debaixo do poste no final da Rua  Magalhães Pinto, em Caxambu onde trabalhava, viu um vulto, um pequeno vulto branco com grandes olhos (fechados), de cabeça baixa, sentado debaixo do poste, como uma criança. Contava que tomou distancia, passou para o outro lado da rua e subiu a escadaria correndo sem olhar para trás. Era a assombração. De uma fresta da janela que dava diretamente para o poste, viu a criatura diminuir, diminuir. De medo foi deitar cobrindo a cabeça. Ela contou ano após ano, várias vezes a mesma estória, sempre com os mesmos detalhes.

A gaiola de passarinho e a independencia



Talvez um dos maiores ensinamentos de minha mãe veio não didaticamente com discursos feministas, até porque na época a palavra não era conhecida, e sim de um episódio prático, vivido muito antes de eu nascer.
Dona Arminda tinha dois robbys: a jardinagem e o outro criar passarinhos em gaiola. Para os dias de hoje o fato seria ecologicamente incorreto, mas ha décadas traz era comum casas terem passarinhos aprisionados em gaiolas. Tiravam a liberdades dos pobres bichos para deixa-los cantar magoados perto dos nossos ouvidos e ainda se justificava: Eles aqui tem comida, lá fora eles tem que procurar, senão passam fome...

Inúmeras gaiolas eram dispostas nas paredes da casa, espalhadas pela varanda: Sabiás, Pintassilgos, Canários, Trinca Ferros... Contava ela um dia gostaria de poder comprar mais uma gaiola para seus passarinhos, quando recebeu um "não" de seu José Ayres. Indignada, contou muitos anos mais tarde a história e acrescentou com a cara enrugada e cheia de raiva e que até hoje não esqueço: "Nunca dependa de marido. Trabalhe para que ganhe o seu próprio dinheiro". Pois esta história carreguei a vida inteira no meu pensamento. Sábios conselhos. 

Estrangeira 

Caxambu parecia-lhe uma terra estranha, como se morasse no estrangeiro... Baependi é que era sua verdadeira pátria, onde moravam seus entes queridos e disso ela nunca se esqueceu. Em 1975, por um desejo dela, refizemos a pé por quatro horas o antigo caminho que ligava Baependi ao Gamarra, passando pelo alto da Serra. Na matula, deliciosas coxinhas de galinha confeccionadas no dia anterior. No programa estava visitas aos antigos parentes e vizinhos. Os casebres das famílias remanescentes ainda estavam lá, em precaríssimas situação, e mesmo assim fomos recebidos com alegria, muito café quente e pude dormir em um macio colchão de palha de milho. Em outra parada, sentamos debaixo de uma laranjeira com uma faca na mão. Saímos de lá com a barriga cheia. Não me lembro de termos chupado tantas laranjas de uma só vez em nossas vidas...

No final da década de 80, com a idade 45 anos resolver ir à escola, matriculando-se no Mobral, escola  noturna no bairro Caixa D`Agua e assistiu aulas com a professora Lucia  Maria Villela Levenhagem. Um dia ela recebeu com orgulho seu diploma de 4° ano primário. Agora ela sabia ler e escrever. Ah, mas bem lembrou a outra professora Magali Brochado, que foi uma das incentivadoras   de minha mãe prosseguir os seus estudos, ela orgulhosamente chegou até a 7a série.

Pling... Pling...

Nos dias chuvosos de dezembro, era o tempo que mais minha mãe sentia saudades da sua vida na roça; quando as chuvas de verão caiam pesadas sobre o telhado, ela colocava uma daquelas latinhas redondas de manteiga Skandia na saída da calha para ouvir durante a noite o pingar da água... Pling... Pling... Sempre alegre e otimista queria viver para sempre, mas ao mesmo tempo refletia: "Os mortos tem que dar lugar para os vivos, veja quanta gente que nasce..." E acrescentava que quando morresse queria ser sepultada juntamente com sua mãe em Baependi. O seu desejo foi cumprido.

Último retrato, Caxambu 2006
Arminda Maria Ayres faleceu em abril de 2012, aos 89 anos, na Santa Casa de Misericórdia de Caxambu em conseqüencia de  uma grave fratura no femur.

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