domingo, 3 de janeiro de 2016

O crime de Suzana

Duas cruzes, dois destinos*

Em 1920 o chamado "Crime de Suzana" chocou na cidade e a quase um século o crime permanece na memória do povo e é história. Duas cruzes encontram-se ainda no sopé do Morro de Caxambu para lembrar o trágico acontecimento, levando muita gente a fazer peregrinação até lá, acender velas, deixar flores, imagens de Santos e orar por ela...

Domingo ensolarado. No início da primavera as temperaturas nas Águas Virtuosas de Caxambu eram extremamente agradáveis durante o dia, 23°. Não era raro a temperatura à noite cair aos 8° graus e a noite era bom não esquecer que puxar o cobertor. Os campos amanheciam ligeiramente brancos, cobertos por uma fina camada de gelo. O Diário da União de Minas Gerais, registrava:
"Geou esta manhã ..."

Ela  23, ele 26

Suzana Torrens, (na certidão de óbito consta como Masson (1897-1920) francesa de nascimento, trabalhava no comércio e Armando Baptista de Carvalho (1894-1920), pernambucano, farmacêutico, se conheceram, não sabemos se no Rio de Janeiro ou em Pernambuco, se apaixonaram e se casaram  antes dele viajar, acompanhando a Missão Médica brasileira à França,  no período da Primeira Grande Guerra Mundial.

"Só gente boa"

Medicos da Missão, 1920
Chefiada pelo médico e deputado José Thomaz Nabuco de Gouveia a Missão era composta de médicos, enfermerios, auxiliares na área de medicina e doutorandos, incluindo farmácia, intendencia e secretaria, e alocados nas difentes patentes militares.
Como os outros participantes, Armando foi escolhido diretamente por Nabuco e é provável que ele tenha sido contratado no último momento, pois não constou da lista oficial de participantes, publicado no Diário Oficial da Época. Um dos critérios era conhecimento do francês, e para ele talvez tenha sido mais fácil conquistar a "vaga". Lembremos que Suzana era francesa e talvez tenha aprendido a língua com  sua esposa.
Se por um lado relatos ouvidos que as nomeações, "foram baseadas na competência, e sem influencia política" e enfatizado que  "Por parte da Armada, só quero gente boa nesta expedição", as cartas do "missionário anónimo", publicadas no Jornal O Correio, tinha outra opinião: "Como sempre as nomeações atendiam as injunções políticas de toda a natureza".  Claro as nomeações por "pistolões" não foram invenção de hoje e quase que dobraram o número de participantes estabelecido para a missão. O "gente boa" era um argumento profissional, mas não de caráter. De qualquer forma, por competência ou pistolão, Armando foi para Europa.

Embarque do Navio "El Plata" frances, no porto
do Rio de Janeiro, 1918
O embarque no dia 18 de  agosto  1918, foi com muita festa no porto do Rio de Janeiro, mas eles não sabiam que a viagem seria tão  difícil.
Apos fizer uma baldeação em Dacar, norte da África,  tripulantes caíram doentes  contraindo a gripe Espanhola, e antes de desembarcarem ao seu destino, o porto de Marselha, a 24 de setembro, a guerra ja havia feito entre eles 4 vítimas.
Chegando à França  os médicos foram enviados em diferentes momentos da missão e com funções diversas a cumprir em várias regiões do país, mas foram também enviados à outras cidades como Bordeau, Bouges, Besancon, Marselha, Montpellier, Nantes, Reims, Rennes e Tours. Armando com a patente adquirida de "tenente-farmacêutico" atendeu doentes e chegou até a ajudar a fazer parto.

Rua do Catete,  Rio de Janeiro nos anos de 1920
Em marco  de 1919 já estariam quase todos os participantes de volta ao Brasil, inclusive Armando, que após sua missão na França, exercia a profissão de bancário. Pelo visto, mesmo com a perspectiva que tinham da experiência adquirida de galgar postos no trabalho, e talvez por isso, Armando foi exercer a profissão de bancário, e não de farmacêutico, trabalhando para o Banco Italiano de Descontos; estava bem integrado à sociedade carioca, residia no centro da cidade, na fervilhante Rio de Janeiro na Rua do Catete, 46 e levava até então uma vida normal. Até então...
Carimbo do Banco Italiano de Desconto, 1920

Façam uma visita histórica virtual à residência na Rua do Catete n° 46 . O prédio pintado é o branco em estilo "moderno", tendo à esquerda o prédio com a fachada do ano de 1907 e à direita do "Subway".

Voluptuosa e leviana

Suzana, segundo o jornal que reportou o crime, relatou que ela agia de forma "voluptuosa e leviana" e que parentes e amigos na época desaconselharam Armando a se casar. Os apelos foram em vão, pois seu coração estava apaixonado. Assim eles se casaram antes de sua partida para a Europa.
A ausência de Armando do país por quase 8 meses talvez tenha afetado o relacionamento e seu casamento não ia bem. Ele tinha suspeitas  que sua mulher o estava traindo.
Um dia, voltando do trabalho percebeu que sua Suzana não estava em casa, mas achou normal o fato  já que ela trabalhava de caixa na barbearia Double. Mas o tempo passou  e Suzana não voltou. Depois da ausência tão prolongada, Armando deu parte à polícia do seu desaparecimento. Diligencias foram feitas pela polícia, mas sem sucesso. Diante dos fatos, estava convencido de que Suzana o traía e procurou um advogado para iniciar o processo de divórcio.
Assim descrevia O Jornal que noticiou a tragédia:

"Não  se sabia como chegara ao conhecimento do empregado do Banco Italiano de Descontos o paradeiro de Suzana, nem os pormenores da fuga da esposa, quando telegrammas de Caxambu trouxeram a noticia da dolorosa tragedia ali desenrolada."

Enquanto isso nas Águas Virtuosas de Caxambu...


Caxambu cidade já famosa na época como "Águas Virtuosas", visitada por inúmeras figuras da vida política brasileira e constantemente noticiada nos jornais e revistas, de como era chic ir passar férias naquela cidade, (foto).

Embora Caxambu fosse aprazível para aos turistas, parece que  a viagem até lá não era tanto assim. Olavo Bilac, no ano de 1906, descreve: "Vale a pena aturar as 10 horas de viagem, pela "Central", pela "Minas e Rio", e pela "Sapucahy", só para travar conhecimento amável com os periquitos de Caxambu!" Mesmo assim os hóspedes tomavam a empreitada da viagem  e parece que os sacrifícios recompensavam.

O elegante e luxuoso Palace Hotel e seus nobres hospedes eram constantes aparições na Revista Fon-Fon que noticiava o que acontecia na sociedade carioca dos anos 20 e provavelmente Suzana era sua leitora assídua. Caxambu era moda e fazia parte do sonho da classe média-alta passar uma estação de veraneio nas "Águas Virtuosas". Não foi difícil adivinhar porque Suzana a escolheu então como destino de sua "fuga"...

A revista Fon-Fon nos dá uma pista quem eram os frequentadores da cidade. Na foto abaixo um grupo de hóspedes do Palace Hotel, cujas profissões eram fazendeiros, advogados, capitalistas, promotor público, vindos de várias partes do país, especialmente de São  Paulo, Bahia, sem falar dos cariocas, enfim gente que realmente era a nata da sociedade brasileira da época.



O palco do crime


Suzana já estava hospedada ha 4 dias no Palace Hotel, quando recebeu notícias da visita do seu marido. Segundo o jornal que noticiou o crime, ela foi encontra-lo na estação de Soledade de Minas e juntos chegaram a Caxambu. Muito provavelmente utilizaram os serviços do hotel, o Ford, ao lado, que levava e buscava os hóspedes na Estacão do Trem. O casal então almoçou no Hotel Bragança e depois seguiram para um passeio.

O calvário de Suzana




O que aconteceu no trajeto, entre o Hotel Bragança e até o local de seu assassinato ficaria somente entre eles. Naquele tempo, o caminho que levava ao morro de Caxambu não difere do que é hoje. À direita e esquerda de quem sobe em direção ao pico, ha a continuidade de mata, um prolongamento da área do Parque das Águas. Foi ali que Armando matou brutalmente Suzana à facadas e a tiros, suicidando-se após com um tiro na cabeça. Se fôssemos julgá-lo, seria condenado pelo crime premeditado. Ninguém carregaria uma faca e um revólver por acaso.

Perguntas e mais perguntas

Hoje, lançando o olhar sobre este crime brutal levantamos algumas questões intrigantes: Quem telegrafou para Armando avisando que Suzana estava em Caxambu e no Palace Hotel? Teriam eles, Armando e Suzana feito estação de veraneio em Caxambu em outra ocasião  e já eram conhecidos na cidade? Teria Suzana um amante de verdade? Fugiu Suzana com ele? Teria ela talvez recebido alguma ameaça do marido e por isso planejou a fuga? Perguntas que hoje não poderão  ser mais respondidas.

Lírios brancos para Suzana



Me lembro que minha tia Palmira, quando vinha a Caxambu, colhia lírios brancos do jardim de minha mae, a Dona Arminda e levava até o local do crime.

Suzana e Armando foram sepultados em 20 de setembro de 1920 no mesmo dia, no Cemitério Paroquial de Caxambu, como consta na certidão ao lado, documento este achado ocasionalmente, que me levou a escrever esta autentica história de um crime passional: O crime de Suzana, que faz parte da memória não somente da Família Ayres, mas da cidade de Caxambu.

Eustaquio Gorgonne eterniza o "Crime de Suzana" numa de suas preciosas cartas enviada em fevereiro de 2001.

Prezada Solange.

Espero que em sua cidade o inverno esteja menos invernoso, o sol mais solarengo, a felicidade mais feliz e que os pássaros já estejam cantando nas árvores e dentro dos despertadores. Espero também que tenha recebido as duas cartas que viajaram, no mes passado, dentro de um único envelope.

Aqui, onde nenhuma rua tem sabor, o céu continua azul e a noite aposta, em vão, suas belíssimas estrelas com os tolos parceiros de cidade. Só à tarde, há um ligeiro alvoroço : academias, igrejas, assembléias e aparelhos sonoros saem à caça da população. É o extase caxambuense.
Depois, a depressão,  Trançador, Rua da Palha, cemitério, Bosque, Isolamento, Alguém come-couve, Tião Louco, a Linha do Bonde, a Favela, o crime de Suzana, o sorriso dos Gadbens, matadouro municipal, o córrego Bengo, o tremendal, o morro, o asilo Sto. Antônio, as freiras de chapéu-grande, a moça esfaqueada, Sílvio Canjica, o casarão abandonado dos Guedes, o lago assoreado, a Rua dos Porcos, Alto dos Cabritos, o supermercado (onde vagam os catecúmenos da cidade), o bairro do Sare e da Mombaça, o reformatório chamado Patronato, enfim, uma perfusão de lúgubres paragens e personagens condenados ao vazio.

Foto: *Solange Ayres

Biografia

Cristiano Enrique de Brum - Medicina vai à Guerra: a missao médico-militar brasileira na Franca durante a Primeira Guerra Mundial (1918-1919), História: Debates e tendencias, UPF, Universidade de Passo Fundo, SC
O Jornal, 1920
Revista Fon-Fon
Agradecimentos a Pepe pelo envio do material iconográfico.
Foto: IBGE

4 comentários:

  1. vezes sem conta levei flores a cruz de Suzana, historia triste que sempre povoou o inconsciente de cada caxambuense. Contada e recontada desde que a gente nasce e segue sendo contatada agora aos meus 62 anos.

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  2. Prezadas Graça Silveira e Solange Ayres, certamente passei algumas vezes pelas cruzes de Suzana e seu marido e executor, Armando. Tinha entre 7 e 11 anos, não posso precisar. Vou comentar com minha mãe, hoje com 92 anos, sobre esta história que, sem dúvida, choca e comove. Penso que meu pai, já falecido, nada diria para nós, talvez nem mesmo para minha mãe, excessivamente cauteloso em nos narrar episódio tão impactante. Contudo, falarei como ela, a ver se tomou conhecimento do caso. Belo trabalho, o de voces, significativo para quem ama esta cidade, como eu, que aí vivi entre 55 e 60. Meu pai foi funcionário do então chamado patronato. Estudei no Grupo Escolar Pe. Correia de Almeida, de segunda a quarta séries, com as professoras dona Olga (segunda série) e dona Terezinha (terceira e quarta séries). Inesquecíveis pela competência e seriedade. Moramos em quatro regiões, pela ordem: proximidades do matadouro; depois, estação ferroviária; em seguida, rua Quintino bocaiuva, outra vez próximos do matadouro; e finalmente, no Trançador. A primeira série cursei na Escola Normal Santa Terezinha, sob a batura da irmã Laura. Grande abraço.

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  3. Eu dez de criança ouço esta estória da cruz da Susana. Só que ñ sabia da estória direito ele falava que ele era amante só agora que estou sabendo que era marido

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  4. Me chamo Marília soares ,tenho 45 anos e passei muito pela cruz de Suzana e sempre ouvia a história de meus pais do acontecido,trágico e brutal crime de Suzana e só agora lendo matéria descobri que Armando era esposo de Suzana ,muito triste e quem passa por Ali sente um clima de tristeza e que não tem como descrever.

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