sábado, 8 de abril de 2017

Uma Caxambu de outro século. A humanidade na fase de pássaros


Hoje vamos recuperar uma história de vida, digo, de muitas vidas. Vidas nascidas, vividas, perdidas, pouco vividas...

A nossa história começa com o casamento de Maria José Ayres de Lima (1881-1946) com o português Ramiro Rodrigues Freitas (?-?), em 19 de fevereiro de 1898, fundando assim na Família Ayres o ramo dos"Rodrigues Freitas" (leiam aqui a história completa da origem da família Rodrigues Freitas).

Era outra época, era outro século. Ainda faltariam alguns anos para que Caxambu tivesse sua água encanada, suas ruas, pelo menos as do centro, calçadas e o bengo canalizado. Enquanto isso a população pobre ia sofrendo com as baixas condições de higiene  e consequente tornando-se vulneral às doenças que assolavam a cidade. A situação permaneceria crítica até o meados dos anos 20, quando Camilo Soares  assumiu a prefeitura de Caxambu (1910-1916), iniciando o processo de urbanização da cidade. O centro foi revitalizado, mas a periferia ficou para mais tarde. O bengo canalizado... Para além de 1.800 metros do centro da povoação, que digamos, era para turista ver ou não ver, porque no fundo do quintal de vó Mariquinha, ele corria como um esgoto a céu aberto. Os habitantes do Bairro Trançador, permaneceram por décadas sem água encanada, até que, em 1937, é publicada uma nota no Jornal O Patriota solicitando ao prefeito não os esquecerem e canalizar o "precioso líquido" até lá.

O vivo arquivo dos mortos

Escarafunchando os arquivos dos óbitos de Caxambu do inicio do século é que a realidade se descortina. Lá o escrivão, no caso o padre, fazia as últimas e derradeiras anotações sobre os falecidos, crianças, muitas delas! Aqui temos um verdadeiro retrato da herança do Brasil Colonial, das diferenças sociais, da triste vida que levava os seus cidadãos e os considerados “não cidadãos”, os negros ex-escravos, que morriam sem assistência médica.

Particularmente as crianças eram as primeiras vítimas. Nas anotações constavam a causa-mortis dos pequenos: "sem assistência", de pneumonia, meningite, gripe, sarampo, coqueluche, tétano no umbigo, tifo,  sifilis (!), cólera, sarna (sic) e males do intestino como diarréia, vermes intestinais, "Ataque de bichas" ou "catarro sufocante", assim escrito.  Uma onda de sarampo assolou a cidade de Caxambu, no ano de 1917. A gripe também ceifou muitas vidas. Vacinas? Médicos? Estes somente para atender aos veranistas que frequentavam as águas milagrosas.  Quem tivesse uma "urgência" deveria se dirigir a... Baependi, 5 quilômetros da povoação a cavalo ou carroça. Baependi, em termos de saúde, já tinha tomado a iniciativa da construção de um hospital. A Assembléia Provincial, em 1879, decretou orçamento para compra de um terreno para a sua construção. O hospital entraria em funcionamento por volta do ano de 1883. Os pacientes de Caxambu teriam que esperar "pacientemente" pela obra  do padre João de Deus (leiam aqui a sua biografia), a Santa Casa de Caxambu que foi inaugurada somente no ano de 1926.

Deus dá, Deus leva

As crianças  que nasciam eram consideradas mandadas por Deus.  Planejamento familiar e métodos contraceptivos eram palavras desconhecidas e a pílula  só começou a ser vendida no Brasil, em 1962.  Muitas das crianças nascidas no início do século, em Caxambu, não sobreveriam até o seu terceiro, quarto anos de vida, e os que tinham sorte de chegar à adolescência ou idade adulta eram braços ajudar a sustentar a casa e num futuro, "seguro na velhice" para os pais. Na família teve de tudo.

Caxambu teria seu Posto de Puericultura, isto é, Posto de atendimento à criança,  mas não em 1901. De urgência em urgência, a primeira perda na família Ayres/ Rodrigues de Freitas não foi por doença e sim por uma tragédia. A pequena Izabel, nascida em 1901 e batizada pela tia por afinidade Salviana Maria da Conceição, (casada com Cecílio José de Souza, irmão de José Trançador-filho) veio a  falecer em conseqüência de queimaduras, aos quase 2 anos de idade, em 21 de julho de 1903, sendo enterrada "por esmola", demonstrando o quão pobre era a família. O que teria acontecido? Acidente? Hoje não podemos recuperar mais a história.


Então houve uma grande "pausa" de 5 anos entre os nascimentos, na casa da tia-vó Mariquinha e tio-vô Ramiro e em 1911, nasce Joaquim Rodrigues, a alegria da família e que viveu somente 2 anos, vindo a falecer de gripe intestinal, em 10 de outubro de 1913.

No mesmo ano, quase 4 meses antes do pequeno Joaquim ser sepultado, nasce  Laura Rodrigues Freitas,  em 27 de julho de 1913. Ela também não sobreviveu a uma pneumonia dupla e faleceu, em 9 de novembro de 1915. Assim era, um filho chegava, outro ia...

Um ano passado da perda de Laura, nasce José Rodrigues Freitas, em 11 de dezembro de 1916 e vindo a falecer, dramaticamente, aos quatro anos, em 28 de abril de 1921, de "laringite estridulosa", isto é, uma laringite que pode ser provinda de uma gripe mau curada, levando o paciente a sufocação, devido ao bloqueio das vias respiratórias.

Haroldo Rodrigues Freitas foi o presente de Natal para a família. Ele  nasceu justamente no dia que o menino Jesus veio ao mundo, em 25 de dezembro 1922, mas a felicidade na família não durou. Ele faleceu aos 4 meses idade, em 16 de marco de 1923 de meningite. 

A casa solidária de vó Mariquinha

Mas a casa de vó Mariquinha não ficou sempre triste. Mesmo com perdas de filhos tão pequenos, e  uma grande família para sustentar, ela não exitou em ajudar a criar o sobrinho  João de Deus, filho de seu irmão Manoel José de Lima, quando perdeu os pais, nem outra menina, que até agora, não pudemos identificar o nome, mas eternizada na foto com um "não". Foi uma observação de quem guardou a foto para dizer que ela, não era da família. Na histórica foto, feita em Aparecida do Norte, em uma das visitas da família à Santa, a mão  de vó Mariquinha sobre o seu ombro demonstra o afeto para com a filha adotiva.

A humanidade na phase de pássaros

"Quem já viu o Parque das Águas em Caxambu, regorjitando de petizes como um viveiro encantado e um grande jardim, onde grassa a humanidade na sua phase de pássaro e flor, sente uma pena infinita dos meninos e meninas que nunca conheceram as delicias tão próprias daquelle éden infantil. (O Municipio, 1928). (1)

O médico e jornalista carioca Floriano Lemes frequentador da cidade, escreveu o que viu.  Para ele o universo caxambuense era o Parque das Águas, e as crianças viviam num verdadeiro paraíso. Da cidade era conhecido somente o seu centro. Sim, dissemos nós, crianças como pássaros que nasceram e voaram cedo para o céu.
A todos que se foram, nossas reverencias e lembranças.

Fonte:
(1) Campos, Raquel Discini in Um intelectual viajante: Floriano de Lemos no sertão paulista (1926-1930)/ Revista Brasileira de História.
Fotos:
Arquivo privado da Familia Rodrigues Freitas
Arquivos eclesiais de Baependi- Familia Search

3 comentários:

  1. Muito bom, é bom ver nossa história preservada senão vira v estória, parabéns minha amiga.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Jacob, todas sao histórias de vidas vividas, como a nossa. Escrevendo e reescrendo, vamos lembrando e preservando a história que também é da cidade de Caxambu. Abracos.
      Solange Ayres.

      Excluir
    2. Jacob querido, esse é o nosso objetivo, escrever a história dos membros de nossa família e suas ramificações resgatando junto a história da cidade. Cidade é vida, cidades são vida. Abracos. Solange Ayres

      Excluir