quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Uma viagem rumo à Aparecida




Não sabemos, na família, quando começaram as peregrinações à cidade de Aparecida, mas os registros fotográficos dos lambe-lambe da cidade nos dão uma pequena pista (fotos acima). É certo que, por volta de 1920, vó Mariquinha, a Maria Ayres de Lima/ Rodrigues Freitas e o vô Ramiro Rodrigues Freitas reuniam a família e iam de trem até Aparecida, juntamente com os parentes, vizinhos, amigos de cá e de lá da cidade, crianças de colo, novos e velhos (foto). E era o acontecimento do ano. A família embarcava na estação de trem, em Caxambu, nas caravanas organizadas pela Igreja. Eram dois dias em que os peregrinos ficavam hospedados na cidade e iam assistir à missa perante a Santa que foi pescada nas águas do rio Paraíba, em 1717. Desde então a povoação receberia peregrinos vindos de toda parte. Caxambu tinha tradição em participar dos eventos.

Tradição na família

O clima já era criado no trem, quando as mais velhas pegavam no terço e iam rezando. Umas iam em silêncio, outras em jejum, já fazendo valer suas promessas até a chegada na cidade, conta Graça Pereira Silveira, a filha de Geralda Pereira e neta de Mariquinha. Para as crianças, era divertimento. A viagem demorava quase o dia inteiro, e os romeiros hospedavam-se nas inúmeras pensões localizadas no centro da cidade. E, como era um evento que acontecia somente uma vez por ano, os parentes colocavam as melhores roupas, de linho, passadinhas, e calçavam os sapatos, talvez o único par, que muitas vezes eram usados somente em ocasiões especiais, porque, no mais, o povo ia descalço mesmo, só calçando os sapatos em frente à igreja, antes de entrar. A peregrinação ainda se dava na Basílica Velha, onde as crianças entravam assustadas com a quantidade de velas acesas na sala dos milagres.

E o trem apitava que estava de partida. Ele era composto daqueles vagões de madeira que iam chacoalhando, produzindo um som de trac-tratac, trac-tratac monótono. Os bancos desconfortáveis maltratavam o traseiro, mas a novidade era tanta que ninguém se importava, até porque a família nunca tirava férias, nem viajava grandes distâncias. Uma vez por ano chacoalhar os ossos naquelas caixas de madeira da Rede Ferroviária não era tão mau assim.

Falecida vó Mariquinha, Maria Ayres de Lima/Rodrigues Freitas, suas filhas levaram à frente a tradição e continuaram as peregrinações, agora na excursão organizada pelo Padre Castilho. Mas, numa dessas viagens, a coisa se complicou. O senhor Purguinha, conhecido sanfoneiro e morador do bairro Trançador, foi ao banheiro descarregar suas "necessidades", no vaso do trem, ou melhor, fora dele. O banheiro não tinha aqueles reservatórios e as "necessidades" caiam diretamente na... linha. Como? Caiam sim, diretamente na linha do trem. Iam adubar os trilhos. 

As lembranças que cheiram

O Ramiro de Freitas, conhecido como Ramirinho, que usava na ocasião o seu melhor e talvez único terno branco, daqueles engomados e passados com esmero, foi atingido, borrifado, melhor dizendo, com o... proveniente do tal toalete, na traseira do outro vagão, ao apreciar a paisagem. Primeiro foi o constrangimento de ver o seu terno branquinho agora pontilhado de marrom. Nem vamos falar do cheiro que exalava a coisa toda... O perfume cashmere bouquet de Geralda, distribuído em pequenos chumaços de algodão, embebidos e distribuídos aos peregrinos no vagão para colocar nos narizes, não foram suficientes para neutralizar o cheiro do outro "perfume" desagradável. A viagem ficou assim marcada para sempre na lembrança de todos. Não adiantava rezar. O cheiro era mais forte. A expressão "a rodela do Quincas", isto é, a chave do quarto do hotel em Aparecida que ele perdeu, que estava num chaveiro com uma rodela, virou piada nos dois sentidos.

Essas histórias a gente lembra só para esclarecer aos de hoje que a vida não era tão fácil assim e que as coisas, em curtíssimo espaço de tempo, mudaram radicalmente, por exemplo, comida na estrada, ou melhor, nos trilhos. Claro, farofa! Quem pensou em outra coisa errou. O que não se podia fazer era abrir a janela ao comer. A vizinha viu toda a sua farinha voar pela janela; só ficaram os torresminhos. 

Quem é quem/ As famílias
Foto 1: Maria Ayres/Freitas/ Mariquinha e Ramiro Rodrigues Freitas e família
Foto 2: Anna Ayres de Lima/ Lica e José Eugenio de Souza e família
Foto 3: Família Rodrigues Pereira/netos e bisnetos de Mariquinha
Foto 4: Anninha Ayres de Lima e Ricardo Francisco de Souza com netos e bisnetos de Anna Ayres de Lima/Lica
Fotos: 
Família Rodrigues de Freitas em 1924
Família Rodrigues de Freitas na década de 1980
Arquivos privados da Família Ayres/Rodrigues/Freitas.

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